Eva Potiguara

Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil

08/03/2025 05h08
A queimem! Mas não a chamem de “bruxa”
 
O repúdio à voz feminina vem desde os tempos da caça às bruxas.
  
Na Idade Média, bastava uma mulher ser inteligente, independente ou dona do próprio destino para ser arrastada à fogueira.
 
Hoje, a fogueira mudou de forma, mas o fogo segue ardendo nos comentários das redes sociais. A misoginia medieval manifesta suas fagulhas no linchamento digital das mulheres. 
 
Simone de Beauvoir perguntaria: "Se a mulher deve ser livre, por que a cada palavra sua há um inquisidor pronto para julgá-la?"
 
O cancelamento de mulheres públicas, a perseguição de feministas e o tribunal moral das redes sociais são as novas fogueiras.
 
Chamam-nas de problemáticas, "exageradas", "histéricas", porque é mais fácil destruir a mensageira do que encarar sua verdade, ouvir sua voz. 
 
Apesar dessas profundas raízes medievais, chegamos ao século XXI com mudanças importantes na sociedade em relação aos direitos humanos e à equidade de gênero, graças às muitas mulheres que queimaram para que pudéssemos existir. Ser mulher e querer ser livre nunca foi uma escolha sem consequências. Ao longo da história, quantas mulheres foram caladas, mortas, apagadas? 
 
Simone de Beauvoir escreveu: "-Basta uma crise para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Mas a história prova que não basta apenas uma crise. Uma mulher que não aceita ser submissa às injustiças trabalhistas, às punições machistas e que recusa o silêncio encontra um sistema pronto para calá-la – seja perseguindo-a, oprimindo-a ou assassinando-a. 
 
A mulher que resolveu deixar o avental e trabalhar fora para ter autonomia financeira e sustentar seus filhos com dignidade não fez uma escolha fácil. Muitas mulheres pagaram com a própria vida para que hoje pudéssemos ter direitos trabalhistas e vida profissional. 
 
As mulheres queimadas na Triangle Shirtwaist Factory, em Nova York, em 1911, foram vítimas de um genocídio arquitetado para punir as operárias que ousaram se organizar para exigir salários justos pelas horas de trabalho. Elas ganhavam menos que os homens que desempenhavam as mesmas funções em outras empresas têxteis da época. O sistema capitalista colonial sempre andou de mãos dadas com o patriarcado. E, nesse caso, para os homens ricos donos da fábrica, valia mais a pena queimar 146 mulheres vivas do que abrir mão da ganância e pagar salários dignos às trabalhadoras – a maioria, imigrantes judias e italianas. 
 
Quando a tragédia aconteceu, os donos da fábrica manipularam a opinião pública nos jornais e rádios, alegando que se tratava de um acidente. As portas da fábrica estavam trancadas, as janelas fechadas com grades. Disseram que era "para evitar roubos". Mas, na realidade, era para controlar seus corpos e seu tempo, garantindo que o lucro viesse antes da vida. No dia do incêndio, essas barreiras serviram para impedir que as operárias escapassem das chamas. 
 
O que essa tragédia nos indica? Que o trabalho feminino sempre foi explorado e desvalorizado? Sim, mas, sobretudo, que a luta das mulheres por direitos trabalhistas sempre foi marcada por sangue e fogo. Até hoje, mulheres continuam morrendo em fábricas pelo mundo. Seja no Brasil, no México ou em Bangladesh, o fogo nunca se apagou. 
 
Angela Davis sabe bem disso. Nos EUA, o Estado sempre aceitou que mulheres negras fossem exploradas e silenciadas, mas jamais aceitou que se organizassem politicamente. Por isso, Angela Davis foi caçada pelo FBI – porque enfrentou essas ações segregadoras. 
 
Djamila Ribeiro também luta diariamente contra o racismo e o patriarcado com argumentos e estatísticas comprovadas cientificamente. Mas o sistema responde com ataques, ameaças e tentativas de deslegitimar seu trabalho. 
 
E no Brasil? Mulheres indígenas são assassinadas por defenderem a terra. Continuam sendo abusadas e mortas por garimpeiros e madeireiros. Mulheres negras são criminalizadas por denunciarem o racismo em ambientes de trabalho, na saúde e na educação. 
 
O julgamento compulsório da mulher persiste, especialmente na era digital, onde as novas fogueiras se acendem no tribunal das redes sociais. Se uma mulher posta fotos em um momento de lazer, é chamada de "vulgar", "vagabunda", "vadia". 
 
Se engravida e continua independente, dizem que "ninguém quis casar com ela". Se decide que não quer ter filhos, é "insensível e egoísta". 
 
Judith Butler já alertava: "O patriarcado se reinventa. Se não pode queimar mulheres literalmente, ele as queima simbolicamente." 
 
Chimamanda Ngozi Adichie acrescentaria: "A liberdade de uma mulher nunca será total enquanto cada escolha sua for julgada e condenada por todos." 
 
Se um homem estupra uma menina, perguntam: "Que roupa ela usava?" ou "Por que estava naquele lugar?". Às vezes, a culpa recai sobre a mãe: "Não deu educação." 
 
Se um homem é promovido, ninguém questiona. Mas, se for uma mulher, ela precisa "provar" sua competência, além de lidar com boatos de que dormiu com o chefe. 
 
Se um homem acusa uma namorada ou colega de trabalho de ser "complicada", poucos duvidam dele – especialmente se for branco e tiver poder financeiro ou intelectual.  
 
 Isso nos revela, que a mulher sempre está em posição de ré e o homem, de juiz. E, mesmo quando ele é culpado, a sociedade o protege. 
 
As redes sociais se tornaram tribunais modernos. O machismo não precisa mais da inquisição – ele tem a internet. A vergonha pública sempre foi uma ferramenta de silenciamento feminino. 
 
O que essa cultura de repressão nos revela é que, até hoje, a sociedade exige que as mulheres "provem" sua dignidade. Elas são forçadas a passar por inúmeros constrangimentos para lutar por sua idoneidade.  O patriarcado medieval ainda está vivo – só mudou de forma. A descredibilização feminina não é um acaso, é um projeto. 
 
Conceição Evaristo já respondeu: "Eles combinaram de nos matar. Mas nós combinamos de não morrer."  Então, não morreremos. 
 
Quando desacreditam uma mulher, falemos por ela, como sugere Vilma Piedade. Se questionam sua verdade, acolhamos sua dor, ouvindo-a sem prejulgamentos. Mostremos que ela não está sozinha e que sua luta é coletiva. Porque o que mais assusta o patriarcado não é uma mulher desacreditada – é uma mulher que se levanta e sabe que não está sozinha. 
 
E quando uma fala, todas falam. O sistema treme. Ele sabe que essa fogueira da inquisição não vai durar para sempre.  
Então, comemoremos o Dia internacional da Mulher, com gratidão às mulheres que lutaram antes de nós e não soltemos a mão de nenhuma companheira!
 
Sobre a autora:
 
Eva Potiguara pertence ao povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes Visuais, mestre e doutora em Educação pela UFRN, é professora e pesquisadora do IFESP-SEEC. Produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias e articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas. Tem livros infantis e de poesia publicados no Brasil e em Portugal. Ganhadora do Prêmio Jabuti 2023 na categoria Fomento à Leitura e do Prêmio Literatura de Mulheres Carolina Maria de Jesus 2023 do MINC, na categoria Romance
 

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