Eva Potiguara pertence ao Povo Potiguara Sagi Jacu, em Baía Formosa/RN. Graduada em Artes visuais, Mestrado e Doutorado em Educação pela UFRN, é Professora e pesquisadora do IFESP-SEEC, atuando nos cursos de Pedagogia e Letras. É produtora cultural da EP Produções, escritora, ilustradora, contadora de histórias, articuladora nacional do Mulherio das Letras Indígenas, membro da UBE/RN, da SPVA e de várias academias de Letras no Brasil e em Portugal. Tem livros solos infantis e de poesia, publicados no Brasil
Simone de Beauvoir escreveu:
-”Não se nasce mulher. Torna-se”.
Mas quando essa mulher é negra ou indígena, ela não só precisa "tornar-se", mas também provar que merece existir.
Se uma mulher branca tem que lutar pelo reconhecimento, uma mulher negra e indígena tem que lutar pelo direito de estar ali antes mesmo de lutar pelo reconhecimento. Ela pode até falar, desde que não fale alto. Pode até existir, desde que não se imponha.
Mas escrever? Ah, isso é perigoso e incomoda profundamente esta sociedade branca, colonial e patriarcal, a mulher negra e indígena que escreve.
Bell hooks já dizia:
-“O ato de escrever é um ato de resistência. Ele nos dá um espaço onde podemos reivindicar nossa subjetividade."
E aqui está o problema: mulheres indígenas e negras não deveriam ter subjetividade. Deveriam ser apenas personagens secundárias da história, moldadas pela visão dos outros. Quando pegam a caneta, desafiam essa ordem milenar e se tornam autoras de suas histórias de vida.
Pense comigo: porque toda vez que uma mulher negra ou indígena sobe ao palco da arte, da política, das ciências, ou da literatura, há um espanto disfarçado de curiosidade?
Se uma mulher negra vence um prêmio, dizem que foi por cota, se uma indígena conquista um espaço, questionam se ela realmente "é indígena de verdade".
A sociedade espera que essas mulheres falhem, especialmente se elas não se enquadram dentro das normas e dogmas ocidentais da academia. E quando elas não falham, o sistema tenta convencê-las de que elas nunca foram boas o suficiente.
Eles ainda esperam que sejamos analfabetas da nossa própria história, pois o racismo estrutural está em tudo: na surpresa quando uma mulher negra assume um cargo de poder, no desconforto quando uma indígena discursa sobre a sua cultura, ou quando ministra um curso, ou dar uma palestra para uma plateia de acadêmicos. É como se precisássemos provar, a cada página, que somos capazes de articular pensamentos, estruturar frases, construir mundos.
O patriarcado teme a mulher que pensa e escreve.
Agora, se essa mulher é negra ou indígena, o medo dobra, porque a escrita sempre foi ferramenta de poder. E mulheres que nunca deveriam ter poder não deveriam ter palavras.
-“Quem controla o passado, controla o futuro. Quem controla o presente, controla o passado”, nos adverte a escritora Bell Hooks.
Por isso que eles temem, porque se a mulher negra e indígena reescreve sua história, ela não aceita mais o que tentaram lhe impor. E isso, no fim das contas, é o que realmente incomoda.
Como disse Conceição Evaristo, "nossos passos vêm de longe. E continuarão indo longe. Com ou sem a permissão de quem se sente intimidado”.
A mulher negra e indígena que escreve a sua própria história, denuncia crimes estabelecidos socialmente e se torna alvo de perseguições. Conceição Evaristo sentiu isso na pele. Por
muito tempo, a literatura negou o direito da mulher negra ser autora. Ela podia ser personagem, podia ser tema, mas não podia escrever a si mesma.
Eliane Potiguara enfrentou a indiferença e o silenciamento, ao escrever sobre a ancestralidade indígena, enquanto um ato de guerra, porque cada palavra derruba o mito de que os povos indígenas pertencem ao passado.
Por que o patriarcado e o racismo têm tanto medo da mulher negra ou indígena que narra sua própria história?
Eis alguns exemplos: se ela escreve, ninguém pode falar por ela. Se ela narra, não podem distorcer. Se ela publica, não podem enterrá-la no esquecimento.
E é por isso que geralmente, mulheres negras e indígenas, são sabotadas, excluídas e invisibilizadas. É o preço de exigir direitos em um sistema racista que naturaliza violências.
A resistência da literatura periférica antirracista.
Simone de Beauvoir já dizia que o opressor escreve a história e confunde sua dominação com civilização, mas o que acontece quando a oprimida resolve escrever outra história?
A sociedade patriarcal adora mulheres que sofrem em silêncio, mas detesta mulheres que reagem. Se uma mulher negra ou indígena denuncia uma violência, ela “exagera". Se ela grita, ela é “agressiva" e se ela se recusa a abaixar a cabeça, ela é “radical".
O patriarcado não tem problema em permitir que mulheres existam, desde que elas existam em silêncio.
A sabotagem contra mulheres negras e indígenas bem-sucedidas, ou que se destacam, é um fato recorrente nesta sociedade.
Foi assim com Conceição Evaristo. Ela foi recusada na Academia Brasileira de Letras por ter vindo de baixo, por não ter nascido no círculo intelectual da elite branca.
A Djamila Ribeiro, mesmo com livros best-sellers, é tratada como "militante demais" e não como filósofa.
Eliane Potiguara, que desde os anos de 1970, desbravou com resistência as primeiras pegadas da mulher indígena na literatura, rompeu espaços sociais que historicamente foram negados aos povos originários. A despeito das tantas perseguições, ela fez de sua voz e da sua escrita, as pontas de flechas para defender que as culturas indígenas não são inferiores às culturas do branco. Suas obras pioneiras na literatura indigena no Brasil, provam que os indígenas escrevem suas memórias, pensam e transformam a literatura convencional, em cosmovisões, artes e ciências da ancestralidade.
Ailton Krenak já advertiu: -“A violência contra os povos indígenas nunca foi um acaso. É um projeto.”
E parte desse projeto sempre foi nos negar o direito de narrar. Quando mulheres negras e indígenas brilham, o sistema tenta diminuir seu brilho, porém elas brilham mesmo assim.
O boicote e a tentativa de descredibilização de intelectuais negras e indígenas, como mulheres que chegam ao topo, são sempre questionadas sobre sua competência. O patriarcado não sabe lidar com mulheres que brilham porque sabe que, quando uma brilha, todas as outras veem que também podem brilhar.
Mas a literatura contracolonial, segue firme como um levante antirracista de insurgência das memórias que tentaram apagar. É uma retomada da história que sempre foi contada por outras mãos. E mãos negras e indígenas, quando escrevem, confrontam as manobras do poder patriarcal e desmentem o colonizador, recuperando o que lhe roubaram e perdendo o controle sobre elas.
Por essas e outras razões, é que a literatura contracolonial incomoda tanto, porque onde há resistência, há medo dos opressores. Isso é perigoso para eles.
E o que fazer, se eles continuam tentando nos silenciar?
Se chamam nossa voz e escrita de "vitimismo", de "exagero”, de "falta de preparo" e não reconhecem como direito?
Não importa! Sabemos que nossas palavras são como flechas. Uma vez lançadas, não voltam.
E agora que escrevemos, somos protagonistas de nossa história.
E aí, meu bem, o império patriarcal treme!
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).