Fernando Luiz

Cantor, compositor, escritor e produtor cultural. Formado em Gestão Pública, apresenta programa Talento Potiguar, aos sábados, às 8:30 na TV Ponta Negra, afiliada do SBT no RN.

04/08/2024 05h18

O “PADROEIRO” DA MÚSICA BREGA

 

Em 1973, depois de voltar do exílio em Londres, Caetano Veloso gravou o LP Araçá Azul, considerado por muitos como a mais radical experiência tropicalista já realizada até então. O disco, gravado em São Paulo em apenas uma semana, tinha um conteúdo completamente experimental e quando foi lançado bateu recorde... de devolução. Totalmente inovador, o LP trazia na capa Caetano com uma sunga vermelha sumaríssima e continha a regravação de um clássico da música latina: o bolero Tu Me Acostumbraste. Aquilo foi uma espécie de ousadia e causou impacto. E Caetano é um expert em causar impactos, quebrar tabus, derrubar preconceitos e até escandalizar com sua genialidade. Mas quilo foi só o começo... 

Caetano compôs Sampa, um samba-canção cuja linha melódica tem nítida influência de Ronda, música de Paulo Vanzolini, que falava de “sangue na Avenida São João”, um clássico da dor-de-cotovelo. Mas ele não parou por aí e continuou dando “maus exemplos”: gravou o megabrega, Coração Materno de Vicente Celestino cjos versos extrapolavam os limites da dramaticidade: “Disse o campônio à sua amada, minha idolatrada, diga-me o que quer / Por ti vou matar vou roubar, embora tristeza me causes mulher...”  

Em 1973, Caetano fez questão de participar ao lado de Odair José, do evento chamado Phono 73, que resultou na gravação de 02 LP’s ao vivo, e que foi tema do meu artigo anterior. Alguns anos depois, o artista baiano regravou Sonhos, de Peninha, um clássico da música romântica, que alguns preferem chamar de brega. Tempos depois, Caetano vendeu o seu primeiro milhão de discos, ao regravar a  canção Sozinho do mesmo Peninha. E pra completar, em 2003, cometeu uma verdadeira “blasfêmia musical”: regravou Você Não me Ensinou a te Esquecer, música de Fernando Mendes, sucesso estrondoso do final dos anos setenta e início dos anos oitenta, que eu cansei de cantar nos shows que fazia nos “panos de roda” (circos descobertos) me acompanhando ao violão.  Depois da regravação de Caetano Veloso, a canção caiu na graça da elite: deixou de ser brega e passou a ser chique.

A grande virtude de Caetano é que, se por um lado ele não abre concessões ao esquema comercial vigente, por outro não tem preconceito contra as canções que falam de amor e do cotidiano das pessoas comuns. Por isso, de vez em quando ele coloca o intelectualismo xiita de joelhos, ao fazer com que pessoas que o admiram, passem a curtir, na sua voz, canções que, na voz de artistas populares são consideradas de mau gosto e inaudíveis; e assim, músicas de melodia simples, sem acordes dissonantes, mas de profundo conteúdo psicológico e sentimental saem da lata do lixo da cultura musical, para se transformarem em temas de debates em escolas e universidades. Com isto, Caetano resgata valores culturais que a hipocrisia isola, destrói o preconceito que existe contra os artistas populares e contribui para tirar do ostracismo muitos desses artistas, cujas canções refletem apenas e tão-somente o retrato sem retoques de uma camada social pobre e desprivilegiada. E é exatamente nesta camada social onde está situada a grande maioria da população do nosso país e de onde se origina grande parte dos compositores e intérpretes que uma elite preconceituosa define como brega.

Tudo o que está ocorrendo atualmente em torno do ressurgimento da cultura brega no cinema, na música e no mercado de entretenimento, deve-se às incursões esporádicas – mas decisivas - de artistas como Caetano Veloso no universo da música brega.

Na música brega existem dois tipos de artistas: os autênticos que são vítimas do preconceito e sobrevivem do seu trabalho (exemplo: o saudoso Waldick Soriano), e os estrategistas, que ganham dinheiro em cima da cultura brega e que, inegavelmente, contribuem para o fortalecimento do estilo (exemplo: o cearense Falcão). 

Por tudo o que foi dito aqui não resta dúvida que todos os artistas bregas – tanto os ingênuos e autênticos, como os inteligentes e estrategistas - como também a própria música brega - têm um padroeiro: São Caetano... Veloso. 

 

Fernando Luiz é cantor, compositor, escritor, produtor cultural e apresentador do programa Talento Potiguar, que é exibido aos sábados, às 8:30 pela TV Ponta Negra, afiliada do SBT no RN.

Instagram: @fernandoluizcantor



 


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