Fernando Luiz

Cantor, compositor, escritor e produtor cultural. Formado em Gestão Pública, apresenta programa Talento Potiguar, aos sábados, às 8:30 na TV Ponta Negra, afiliada do SBT no RN.

13/10/2024 11h55

“I DON’T WANT TO STAY HERE”

Nos anos 70, durante o regime militar, vários compositores brasileiros tinham que usar a criatividade para driblar a censura. A música de Belchior  Apenas Um Rapaz Latino-Americano também foi composta no período em que os militares estavam no poder e na letra Belchior expressa tudo o que o povo brasileiro e os artistas viviam e sentiam naquele momento: “Eu sou apenas um rapaz latino americano, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior...” E depois:Por favor não saque a arma no "saloon" / Eu sou apenas o cantor / Mas se depois de cantar você ainda quiser me atirar / Mate-me logo à tarde, às três / Que à noite tenho um compromisso e não posso faltar por causa de vocês... O trecho refere-se claramente ao fato de que o poder criativo dos artistas estava profundamente cerceado.

Um dos grandes sucessos do início daquela década, a música Jorge Maravilha, assinada por um tal de Julinho de Adelaide, tinha um refrão que se tornou conhecido: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”. A canção falava de uma relação conflituosa entre um sogro, um genro e uma filha: o autor namorava uma garota cujo pai o detestava. Poucas pessoas entenderam o recado que se encontrava oculto naqueles versos...

Outro exemplo é a canção Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, gravada por Roberto Carlos, cuja letra dizia: “Um dia, a areia branca, seus pés irão tocar / E vai molhar seus cabelos, a água azul do mar...”  A música, uma composição de Roberto e Erasmo Carlos, foi feita para Caetano Veloso, que tinha sido obrigado a se mudar para Londres em 1969, numa época em que os cantores e compositores de vanguarda, impedidos de criticarem a política do país, eram tratados como inimigos do regime.

Em 1970, dois anos antes de Roberto Carlos gravar Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos, o cantor pernambucano Paulo Diniz foi o primeiro a homenagear Caetano Veloso, de quem era amigo, com a música Eu Quero Voltar Pra Bahia. Apesar de ter alcançado sucesso nacional, quase ninguém percebeu a verdadeira mensagem cuja letra já dizia tudo o que a canção de Roberto e Erasmo Carlos reafirmaria dois anos depois:  

I don't want to stay here, I want to go back to Bahia                                                                                                                                 Eu tenho andado tão só / Quem me olha nem me vê / Silêncio em meu violão                                 Nem eu mesmo sei porque / De repente ficou frio / Eu não vim aqui para ser feliz                                Cadê o meu sol dourado / Cadê as coisas do meu país                                                                                                                                                           Eu tenho andado tão só / Quem me olha nem me vê /  Silêncio em meu violão
Nem eu mesmo sei porque /
Via Intelsat eu mando notícias minhas para o Pasquim

Beijos pra minha amada /Que tem saudades e pensa em mim...                                                                                                                                                                                                  

Em 1979, nos estertores do regime militar, a canção de João Bosco e Aldir Blanco O Bêbado e o Equilibrista, numa magistral interpretação de Elis Regina, alcançou grande sucesso e se tornou imortal. Segundo João Bosco afirmou na época, a ideia inicial era compor uma canção em homenagem a Charles Chaplin, que havia morrido pouco tempo antes da música ser escrita. Mas terminou sendo uma homenagem aos mortos e exilados, entre os quais se encontrava Herbert José de Souza, o Betinho, lembrado no trecho "meu Brasil, que sonha com a volta do irmão do Henfil". A frase era uma referência à esperança existente no Brasil em relação à anistia política. O verso "chora a nossa pátria mãe gentil" faz alusão à política repressora que prendeu, torturou e assassinou pessoas que criticavam e lutavam contra o regime.

Outras canções protestaram durante anos contra o regime militar e muitas delas escaparam ao corte da censura por causa da cegueira cultural dos censores. Inclusive a música Jorge Maravilha, cuja letra se referia ao general Ernesto Geisel (que odiava Chico) e à sua filha Luci Geisel (que adorava o compositor).

Em tempo: Julinho de Adelaide foi o pseudônimo com o qual Chico Buarque conseguiu driblar a Censura, que a liberou. Jorge Maravilha tornou-se um grande sucesso e a grande maioria da população não sabia o verdadeiro nome do seu autor.

 

Instagram: @fernandoluizcantor


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