Cefas Carvalho
Jornalista, escritor. Editor do Potiguar Notícias
17/03/2022 09h18
Esperando Godot
Agora com quase todos vacinados e os números de óbitos a pandemia de Covid parece estabilizada e, salvo alguma variante terrível, em rumo de chegar ao fim. Mas os dias de confinamento foram difíceis para muita gente. Lembro que na primeira semana de isolamento social em meu apartamento desenvolvi uma série de rituais e hábitos, de maneira a manter um mínimo de disciplina e, por que não dizer, equilíbrio emocional. Um desses rituais consistia em trabalhar no escritório improvisado na sala de estar, teclando no notebook, até meia noite. Pontualmente nesta hora eu desligava o computador para assistir a um filme no quarto de dormir, e fechava a janela da sala e a cortina.
No primeiro dia que cumpri esse ritual, percebi uma lagartixa que, escondida pela cortina e relevada quando a puxei para o lado da janela fechada, andou parede afora rapidamente para se esconder na estante de livros. Dei de ombros. Lagartixas são inofensivas, e até simpáticas. Desliguei a luz e recolhi-me ao sonos dos justos.
No dia seguinte, novamente trabalho e escrita até tarde da noite. Uma noite abafada, por sinal, que pedia a janela da sala aberta na esperança que um vento uivante ou não minimizasse o calor. Terminadas as tarefas de escrevinhar, cumpro e ritual de fechar a janela e puxar para a esquerda a cortina. E lá estava novamente a lagartixa, que, relevada, corrida pela parede pela direita rumo aos livros.
E, sim, a mesma coisa se repetiu na terceira noite. E na noite do dia seguinte.
Pesquisei na internet sobre comportamento das lagartixas. Estava curioso quanto a seus hábitos, sabia que alguns animais mantinham comportamento ritualístico. Mas, nada descobri a respeito sobre lagartixas. Descobri, sim, que elas são do reino Animalia, do filo Chordata e da classe Reptilia, o que pela biologia a coloca como réptil. Estranho, não é? Enfim, não obstante também descobrisse que as tranquilas lagartixas caseiras são da ordem: Squamata e da família Gekkonidae, nada no Google me elucidou o porquê delas manterem hábitos cotidianos.
Naquela noite, até com certa ansiedade, cumpri meus rituais e lá fui eu para a janela e cortina. Com certo suspense puxei rapidamente a cortina e... voilá. Lá estava a lagartixa, que, pega em flagrante ou em atitude suspeita, rastejava pela parede até a estante de livros e se metia entre eles.
Suspeitei, então, que tratava-se de, não um hábito comum à espécie, mas de uma postura particular daquela lagartixa, que devia ser diferenciada em relação aos do seu gênero. Merecia uma maior atenção, portanto. Merecia um nome. Como ela se escondia entre os livros e me deixava, de certa maneira, esperando pela sua aparição, apelidei-a de Godot, como o personagem que nunca aparece e que é sempre esperado na peça teatral clássica de Samuel Beckett.
No dia seguinte, o mais do mesmo, e ao fechar janela e cortina, como fazia repetidamente há dias, lá estava eu esperando Godot. Que estava lá. Não sei se me via e corria para os livros, ou apenas sentia que sua proteção fora retirada.
Comecei a me perguntar de que ela se alimentava. Não havia nutrientes para uma lagartixa naquele local da sala e muito menos dos livros e não consta que esses simpáticos animais comam celulose, ao contrário dos malditos cupins que, antes da dedetização, haviam me devorado alguns livros.
A lagartixa, então nominada Godot, não apenas passou a ser uma espécie de animal doméstico, mas, um talismã, parte da casa. Claro que meus rituais não eram cotidianos. Alguns dias chovia o dia inteiro, portanto, eu sequer abria a janela e a cortina para fechá-las à noite. Outra vez exagerei nas cervejas e dormi sem lembrar de fechar a janela e a cortina. De qualquer forma era como se Godot estivesse lá. E nas outras noite ele sempre estava, enfim, fazia parte do cotidiano, da parede, da casa. Era como se a estante de livros já fosse dele.
Até que, na terceira semana, terminado um texto difícil e me preparando para dormir, cumpri o ritual e eis que, puxada a cortina, a parede vazia. Godot não estava lá. Olhei no restante da parede, do outro lado, e nada. Remexi os livros da estante e a lagartixa também não estava lá. Deve ter ido embora pela janela, pensei. Assim, então, terminava minha história com ela.
Passei a sexta-feira seguinte e o final de semana fora, na casa da minha irmã, e na volta, domingo à tarde, tratei de dar uma geral na casa, como dizem, e arrumar os livros. Olhava a parede vazia e sentia falta da minha companhia noturna.
Terminado de arrumar os livros e depois de escrever um pouco, percebi que começava a chover. Fechei a janela e a cortina, já sabendo que a lagartixa não estaria lá. Fui até a cozinha pegar uma lata de cerveja e resolvi preparar um sanduíche. Ao abrir o armário da dispensa para pegar uma lata de atum, percebo uma sombra se movimentando rapidamente para dentro. Abri a outra porta da dispensa e a entrada da luz me permitiu ver Godot lá ao fundo, entre as latas de tomate e conserva. Parecia me olhar assustada. Mas, eu não faria mal nenhum, ela, então seria a guardiã inofensiva e pontual dos produtos industrializados ali guardados. Fechei com cuidado as portas da dispensa e fui cortar o pão para fazer meu sanduíche.
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