Jornalista, escritor. Editor do Potiguar Notícias
Tu queres sono: despe-te dos ruídos
Era como se nada fosse; nem sal, nem doce. O insípido da água resumia tudo que passava em minha boca nos últimos tempos. Eu havia perdido o paladar, certamente. Clara dizia que era o estresse e cansaço dos dias e noites em claro naquele quarto. Branco. Absurda e infinitamente branco. Em suas paredes, cortinas, chão. Branco. De todo o horror que uma UTI de hospital poderia oferecer aquela brancura asséptica, irreal, distópica, talvez fosse a pior, justamente por fingir que o horror não estava ali dentro.
Aquele quarto - assustadoramente branco – desfazia minhas teses e certezas, estilhaçava minhas convicções. De que serviam ali os livros e todo o conhecimento, diante da implacabilidade do destino? De que valem os diplomas, as láureas, os aplausos e doutoramentos se somos apanhados em cheio na roleta russa do acaso?
Não devo blasfemar contra a ciência, ainda era ela quem mantinha ali aquele mundo de horror e alvura. Um mundo em suspenso, tenso, quase irreal. Mas, onde eu estava fixo, quase blindado, e onde estava ele, imóvel, monolítico em seu torpor e desconhecimento.
Foi despercebido que passou pelo Mundo. Essa era a frase inicial do livro que eu estava escrevendo, mesmo contra a vontade de Clara. Qual o problema em se transubstanciar as armadilhas do destino em papel e tinta? Tantos o fizeram e muitos, irônica e paradoxalmente, transformaram em gloria a dor inicial. Não era essa minha intenção, jamais. Tanto que descartei o livro, a ideia, deletei o arquivo. Ficou apenas a frase como um mantra em minha cabeça: Foi despercebido que passou pelo Mundo.
Mas, talvez não tenha sido exatamente assim. Na verdade, nunca soube o que tinha sido, como e quando tudo aconteceu, ou nem mesmo se aconteceu. Fui tomado de surpresa, como um tapa em minha arrogância, meu orgulho, meus predicados e honrarias. Ao chão com minha certeza, minha virilidade, minha confiança, minha crença até então cega na sorte.
Oferecido em sacrifício, você como Isaque, eu, como Abraão, ambos à mercê de um deus intransigente e temperamental. Que digo eu? Isaque se movia, falava e cantava. Ainda que com o deus alucinado sob ele e o pai, Isaque - ao sobreviver ao sacrifício ordenado e depois retido – continuou a vida e gerou Esaú e Jacó e a partir daí, um povo. Eu gerei meu filho que não irá gerar ninguém, e mesmo sem o deus acima de nós, a história terá de se repetir, afinal, os sacrifícios são inerentes à humanidade.
Quanto a mim? Sou o sacerdote, Abraão e deus ao mesmo tempo. Antes da mão pesada do destino cair sobre mim e sobre ele, registro que o filho, ainda que eternamente imóvel, fora amado. Um filho invisível, silente, cego, escolhido, de alguma maneira tortuosa, pelos deuses para o recolhimento sem fim, para as trevas e o silêncio.
Sim, outorgo-me o papel de sacerdote e de criador. É meu direito e hei de exercê-lo.
Aparelhos desligados. Sinal em linha reta. Descanse em paz, filho!
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).