Daniel Costa

09/07/2023 08h59

 

Elis Regina, Ditadura e Deep Fake

 

É muito bem-feito o comercial da Volkswagen em que Elis Regina e Maria Rita cantam lado a lado. Como peça de publicidade foi um lance genial. Mas ele está causando um rebuliço de estourar a boca do balão. É que muitos entenderam ser amoral a criação de uma “deep fake”, em que Elis Regina, uma notória opositora do golpe de 1964, se vê associada a uma marca de carros que foi amiga da ditadura. Se estivesse viva, a cantora concordaria em fazer parte da propaganda?

O comercial não trata de nada relacionado ao golpe militar e houve a autorização prévia da família de Elis quanto ao uso da sua imagem, de forma que do ponto de vista jurídico e pelo lado ético parece não existir muito o que ser questionado. A revolta de alguns é uma forçada de barra. Mas, noves fora isso, a crítica envolvendo a tal peça publicitária serve para trazer à luz os perigos vinculados ao uso da chamada "deep fake”, que é a criação de vídeos e áudios super-realistas, colocando pessoas em lugares onde jamais estiveram e falando coisas que nunca disseram.

Indivíduos, principalmente do sexo feminino, têm sido vítimas da divulgação de vídeos pornográficos falsos, criados com o uso da inteligência artificial, em que eles são inseridos em cenas picantes das quais em nenhuma hipótese teriam participado. A possibilidade de manipulação do processo democrático também é uma realidade, como se viu acontecer nas eleições presidenciais de 2022, em que a técnica de “deep fake” foi utilizada para alterar a fala da apresentadora do Jornal Nacional, Renata Vasconcellos, e divulgar dados de uma mentirosa pesquisa de intenção de votos. Segundo reportagem do jornal El País, na Venezuela o próprio governo divulgou vídeo criado por inteligência artificial, em que apresentadores avatares noticiaram reportagens inverídicas sobre a melhora da economia do país. E mesmo numa situação como a da propaganda da Volkswagen com Elis Regina, o uso da “deep fake” também seria questionável se a sua imagem tivesse sido atrelada diretamente a um ditador ou a um regime ditatorial.

É certo que existe o direito à proteção da imagem dos vivos e dos mortos, que envolve não apenas os atributos físicos das pessoas, mas também o jeito, o humor e a identidade social que se constrói ao longo da vida. Pelo entendimento jurídico atual, é possível utilizar a imagem de pessoa morta, com a autorização da família. Mas e quando a utilização da imagem recriada se dá de maneira contrária à personalidade pública construída pelo falecido, os herdeiros poderiam fazer como bem entendessem?

Parece que não. Mas essa é uma questão nebulosa, ainda não pacificada, que traz à tona a existência dos múltiplos debates em aberto envolvendo o uso da “deep fake”. O simples comercial da Volkswagen, ao utilizar tal técnica para recriar novas imagens de Elis Regina, explicita a existência de questões éticas e jurídicas que precisam ser cada vez mais discutidas, deixando entrever que neste início de Século XXI nem tudo o que parece ser é, até mesmo as coisas mais simples e aparentemente inofensivas.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR.


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