Advogado. Assessor no Tribunal de Contas. Doutor e mestre em ciências sociais pela UFRN.
Nunca mais
Nem sei há quanto tempo eu não via Leila. Talvez tenha sido quando eu fui à escola jogar uma partida de basquete. Mas aí a gente nem se falou, desviamos os olhos com medo de que um não reconhecesse o sorriso do outro, como se isso fosse possível depois de apenas três anos do último beijo. Dessa derradeira vez, porém, coisa de 30 anos depois, não justificava sair do meu canto e puxar conversa no centro de uma sala de hospital; seria constrangedor chamá-la, ainda mais estando os dois vestidos com aquelas camisolas brancas, com abertura nas costas, obrigatórias para aqueles que estão prestes a entrar na sala de operações.
Ela estava de olhos fechados, na poltrona reclinável, talvez ansiosa pensando nos filhos e imaginando que tudo poderia findar mal diante de uma cirurgia para a retirada de um tumor - como fiquei sabendo assim que o médico falou do seu caso à enfermeira que estava ao meu lado. Nessa hora, deu vontade de passear novamente os dedos pela linha das suas negras sobrancelhas, como antigamente, quando eu fazia isso enquanto ligava o meu walkman para que escutássemos, pelos fones de ouvido, o som melodioso do piano de João Donato.
Lembrei-me dos dias em que eu e Leila cruzávamos os braços e deitávamos as cabeças na mesa de pedra, que ficava bem embaixo da mangueira, próxima ao ginásio, e nos olhávamos fixamente como dois narcotizados, enquanto do autofalante da escola reverberava o início de uma sonata de Beethoven anunciando a hora do repouso, antes do reinício das aulas. No nosso caso, enquanto "Ê menina" de Donato ativava as moléculas secretas da felicidade, a “Sonata ao luar” de Beethoven soava melancolicamente como uma despedida, já que só iriamos poder nos ver novamente no outro dia, na hora do intervalo.
De repente, Leila levantou um pouco a cabeça e mirou na superfície refletora das lâmpadas dicroicas da antessala do centro cirúrgico. Acho que nem me viu, mas talvez as profundezas da sua alma tenham se revolvido com o som do primeiro movimento da famosa composição do gênio alemão, que eu sibilava envolvido nas recordações dos velhos tempos. Eu assoviava baixinho, ruminando lembranças, sem imaginar que aquela tristeza um dia sentida, causada pelas notas de Ludwig Beethoven, voltaria a triturar novamente meu coração em mil e um pedaços, após saber que nunca mais veria Leila, porque ela rumou pela estrada do infinito, no último dia 17.
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR.
*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).