Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
Ela é um experimento
A comédia tem a lídima capacidade de manusear coisas sérias, através do riso, para nos levar à reflexão. Independentemente do nível do humor, quando firmamos o pacto de assistir a um filme ou ler uma obra deste gênero, aceitamos rir dos infortúnios e desgraça do outro – e de nós mesmo, já que ela é um espelho.
Com Pobres criaturas, lançado ontem (01) nos cinemas brasileiros, não é diferente. Com 11 indicações ao Oscar, o filme, sob a direção do cineasta grego Yorgos Lanthimos (“A favorita”, 2019), foi inspirado na obra homônima do romancista britânico Alasdair Gray, que conta a história de Bella Baxter, uma jovem que é trazida da morte para a vida pelo marido-cientista. Reconhece essa narrativa? Essa premissa frankensteiniana dá o ponta pé para que a obra cinematográfica se desdobre.
O ponto em comum entre a criatura de Mary Shelley e a outra que ganha vida nas mãos do diretor grego é que, ao voltar da morte, à medida que se humanizam (E não eram humanos?), as personagens engendram uma discussão com os seus respectivos criadores sobre a experiência da existência à medida que lapidam suas habilidades socioemocionais e entendem a malícia nas relações sociais. No caso do primeiro, a discussão põe em xeque a existência biológica, a ética e os limites (ou a falta deles) da ciência. Na releitura cinematográfica, o papel social é o cerne da questão.
Bella Baxter (Emma Stone) é uma “experiência” que, ao ganhar seu segundo sopro de vida, comporta-se de forma infantil. E isso é dito pelo marido-cientista de cara retalhada (percebam a ironia nessa imagem), Godwin Baxter (Willem Dafoe), que a traz de volta ao mundo dos vivos e a mantém confinada em uma mansão luxuosa até o dia em que ela é convencida pelo malicioso advogado Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) a fugir com este para conhecer o mundo além daquelas paredes.
Vou destacar essa parte do filme porque ela dialoga com um conto que inspirou a Segunda Onda do Movimento Feminista nos EUA: O papel de parede amarelo, de Charlotte Perkins Gilman. Neste, encontramos a protagonista confinada em uma casa de campo para tratamento psicológico. O médico responsável é o marido. Mais uma vez, a voz da ciência se confunde com a voz patriarcal do cônjuge. No início da narrativa, temos a impressão de que é uma criança narrando. À medida que o enredo se desdobra, a mulher enxerga corpos de mulheres presos na parede do quarto no qual é mantida em repouso e isolamento. Para sair desse espaço, só rastejando. É assim que ela consegue deixar o quarto ao qual foi relegada.
No romance, no conto e no filme (E a arte imita a vida), chama atenção as figuras dos maridos como responsáveis pelo isolamento das mulheres, privando-as do direito à vida social (algo que ainda permanece até hoje) e, em consequência disso, tratarem-nas como crianças, mesmo já tendo alcançado a vida adulta.
Tal temática reverbera desde os tempos mais remotos nas manifestações artísticas, quando paramos para pensar a mulher, enquanto construção social. A grande mensagem do filme é a viagem – um divisor de águas - que proporciona à mulher conhecer vários continentes, condição para a sua evolução como ser humano.
O filme traz algumas cenas hilárias e outras mais picantes – e a vida não é feita de prazer? Contudo, certamente o que vai abalar as estruturas dos espectadores é o comportamento e o discurso da mulher fora dos padrões sociais, principalmente os que tiverem uma velha opinião formada sobre tudo.
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Kalina Paiva, professora, pesquisadora, escritora e produtora cultural.
Natural de Natal-RN, é professora do IFRN, pesquisadora em literatura comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do núcleo de pesquisa em ensino, linguagens, literatura e mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do núcleo câmara cascudo de estudos norte-rio-grandenses. Membro da união brasileira dos escritores - seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da sociedade dos poetas vivos e afins do RN (SPVA), do mulherio das letras Nísia Floresta, e da associação literária e artística de mulheres potiguares (ALAMP); coordenadora de letras e literatura do movimenta mulheres RN.
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