Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

25/10/2024 09h04
 
A política dos horrores
 
Apologia à pistolagem, compra de votos, curral eleitoral, tudo isso regado a muita violência política e até ameaça de morte: eis o cenário político que surge para “recepcionar” Natália Bonavides à medida que ela dispara nas pesquisas de intenção de voto nesta reta final de campanha política em Natal.  
 
A violência nunca começa com tiros. Ela dá sinais. Quando você ouve alguém dizer: “Ela é boa deputada, mas não vai dar conta de uma Prefeitura.” É violência!;  “Ela é uma menina...” ao se referir a uma mulher com trajetória política, com formação em Direito e conhecendo bem as firulas do Congresso Nacional, é violência de gênero. Quando se espalha fake news – que é crime eleitoral – é violência.
 
E antes de mais nada, esse texto é para fazer refletir sobre o que é ser mulher neste país. A violência que a candidata está passando é o dia a dia vivenciado por mulheres brasileiras em várias áreas da vida: familiar, emocional, no trabalho.
 
Nessa semana, ouvimos uma declaração (violenta) do candidato à Prefeitura de Fortaleza que disse: “Brasil: tantas mulheres morrem por dia. Tá, dane-se, e quantos homens morrem por dia?”
 
Não vou trazer dados dessa violência nossa de cada dia, contudo proponho um pequeno exercício a você que está lendo esta coluna. Faça uma pequena pesquisa no Google, escrevendo “homem morto por” e veja o resultado. Depois, digite “mulher morta por” e repare nas notícias que aparecem como resposta a essa busca. Homem é morto por colega ou desconhecido em briga de bar ou de trânsito, por ataque de animal, em confronto com policial, entre outras formas; já a mulher é morta pelo marido, pelo ex companheiro dentro de viatura, pelo policial, pelo pai, enfim... por feminicídio.
 
Então, quando um homem minimiza a situação das mulheres, mandando-as se danar, e/ou questionando para que a Lei Maria da Penha, a resposta é exata (para não dizer cortante): nesse sistema violento, homem não é morto por ser homem, mas mulher é, infelizmente.
 
A violência contra a qual lutamos é uma tradição patriarcal que delineia nossa trajetória desde a colonização, momento em que a mentalidade social católica serviu como forja pedagógica ao comportamento das mulheres indígenas e africanas, tão bem analisada por Mary Del priori em Sobreviventes e Guerreiras (2020), livro que reúne documentos (sentenças de juízes, testemunhos em trechos de processos) que nos ajudaram a saber com melhores detalhes sobre o dia a dia das mulheres, tanto as sinhazinhas quanto as escravizadas, subvertendo o mito da mulher frágil com exemplos reais.
 
Em sua contribuição, a historiadora aponta para a violência como um fenômeno transcultural. Em nossa cultura, ela lista uma herança de três formas de patriarcalismo nesses mais de 500 anos de mestiçagem: o modelo do Ocidente cristão, que atribuiu a culpa à mulher, herança de Eva, razão pela qual fomos expulsos do paraíso e, por consequência disso, fomos obrigadas a obedecer por sermos inferiores física e mentalmente; o africano, onde a poligamia, o tabu da esterilidade, a infibulação e a excisão do clitóris são formas de controle sobre as mulheres; e a dos povos originários, em estágio neolítico, com divisão de tarefas muito definidas — mulheres na taba, homens na caça e na guerra.
 
Pensar que somos resultado dessa “herança” ajuda a entender a força da violência em nossa cultura. Mesmo com avanço em algumas pautas, a ameaça de retrocesso é sempre constante. Não basta batalhar por um direito, mas também garantir que seja mantido porque ser mulher é uma luta constante.
 
É exatamente do lugar dessa clareza que precisamos criar ações de enfrentamento para que nenhuma mulher, numa disputa eleitoral, em exercício da profissão, passe pelo que Natália Bonavides está passando. Trouxe esse exemplo aqui, embora a lista de mulheres sofrendo violência política no parlamento seja imensa, a ponto de haver a necessidade de se acrescentar na lei Maria da Penha a violência política.
 
Se você se incomodou com as vezes em que repeti a palavra violência (ou correlata a ela) nesse texto, é para fazer você sentir como uma mulher se sente todos os dias: uma ilha cercada de violência por todos os lados.
 
Para finalizar, deixarei o poema Por nós, do livro Sangra-se, da poeta Diulinda Garcia:
 
Hoje acordei cedo
sem medo
não abafei o grito
nem prendi
o choro
Resisti
por nós.
 
Foto: Freepik

Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

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