Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

30/08/2024 08h13
 
O agridoce das nossas águas
 
Desaguamos suor, vertemos lágrimas, esquentamos de raiva, fervemos de paixão entre o fel, o sal e o adocicado da existência. Tudo isso porque 70% do nosso corpo é água. Nossas veias e artérias são braços de um rio que circula livremente dentro de nós. A velocidade das águas é movida pelas emoções. Quando descem das nascentes, quem pode segurar a força avassaladora das águas? Da mesma forma que não podemos contê-las, também não dominamos o destino. Isso nos torna tão humanos quanto impotentes perante os acontecimentos.
 
Foi seguindo essa lógica que Carla Madeira transpôs para a literatura o fluxo caudaloso das emoções de Lucy, Venâncio e Dalva, enredadas em um triângulo amoroso, mostrando com essa história o quanto “O sofrimento vem sozinho, tem pernas, mais cedo ou mais tarde ele aparece; o que a gente tem de buscar é a alegria, essa se esconde, delicada na correria dos dias, não se oferece de pronto, quer ser encontrada, surpreendida, amada”. (Carla Madeira em Tudo é rio)
 
Nessa busca, vamos nos deparara com Lucy, uma mulher disputada pela comunidade masculina, prostituta detentora de um poder de escolha com quem quer se deitar; com Venâncio, sujeito bronco, indiferente aos caprichos de Lucy - razão pela qual ela acabará se apaixonando; com Dalva, a esposa que guarda uma dor cujo motivo conhecemos logo no capítulo 3 do romance Tudo é rio (2014), estampada cruamente no meio da página, preenchendo todo o capítulo 4. 
 
Os capítulos são necessariamente curtos e cirúrgicos - no sentido de trazerem a palavra medida e pesada - para que tenhamos a exata dimensão do enredo: estamos diante de um barril de pólvora prestes a explodir. A sedução desse livro, aliás, se dá pela linguagem “amadeirada”. Não apenas acompanhamos as voltas e reviravoltas nos dramas familiares e na sociedade, vemos a beleza dos experimentalismos de Carla Madeira na forma como as histórias de vida são lapidadas pelas mãos de um ourives, coisa de quem conhece o material com o qual está lidando e sabe jogar uns verbos na cara com acuidade – Carla Madeira é publicitária. A surpresa das combinações inusitadas amarra o leitor ao livro. 
 
Além disso, a força das emoções se revela no rio caudaloso de palavras que entregam ao leitor uma narrativa agridoce que se inicia debochada, depois nos coloca no centro da dor do outro, em seguida despeja desejo, não se esquecendo de nos levar à celebração da vida e dos pequenos momentos diários.
 
São tantas emoções acontecendo ao mesmo tempo que, para caber nesta coluna, tive que escolher um recorte, aquela fresta que decidimos partilhar com o leitor para ele se sinta motivado a embarcar nessas águas amadeiradas e intranquilas, estabelecendo um pacto com a verossímil história, espelho de tantas outras que acontecem ao nosso redor e/ou são noticiadas pelos jornais.
 
A literatura, ao contrário das notícias, reveste a palavra com o poder de sensibilizar e nos fazer refletir, além de mostrar outro(s) mundo(s) possível(is). Pensando nessa capacidade de transformação e humanização, Tudo é rio fará parte de uma programação especial neste final de semana.
 
No próximo sábado (31), em alusão ao mês de enfrentamento à violência de gênero, aniversário da Lei Maria da Penha, será realizada uma reunião aberta do Clube de Leitura do Mulherio das Letras Nísia Floresta, na livraria Nobel do Praia Shopping, às 15h dentro do Levante Lilás promovido pelo coletivo. Na ocasião, participantes terão a oportunidade de dividir as suas percepções sobre esse romance que tem ganhado os corações dos leitores, certamente por mostrar o agridoce das nossas águas.
 
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Imagem cedida pelo @mulherionisiafloresta
 
EVENTO: LEVANTE LILÁS - ENCONTRO DO CLUBE DE LEITURA ELAS POR ELAS DO MULHERIO DAS LETRAS NÍSIA FLORESTA.
OBRA: TUDO É RIO, DE CARLA MADEIRA.
LOCAL: LIVRARIA NOBEL DO PRAIA SHOPPING.
DATA/HORÁRIO: 31/08 (SÁBADO), às 15h.
 

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