Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
06/11/2024 11h16
SANGRA-SE
Dia 05 de novembro de 2024. De um lado da cidade, a vida se inquietava para chegar. Contrações, bolsa estourada e o dia mais feliz da minha vida para receber minha sobrinha-neta. Eu vi a vida se mexendo naquela barriga da minha sobrinha que, um dia, também vi chegar, enquanto as dores daquela nova chegada se misturavam à ansiedade de vermos o rostinho de Bianca, um ser que se revelou tão pequenino e frágil com os lábios tão vermelhinhos destacados na carinha branca.
Do outro lado da cidade, o poeta Joseh Garcia se despedia de sua mãe, Diulinda Garcia, poeta também, que fez a sua travessia - notícia que chega até nós na manhã do dia 06, chuvoso e com sol tal qual a dualidade da vida.
Como pode uma mesma data trazer uma das maiores alegrias do mundo e uma tristeza dilacerante ao mesmo tempo? A um só tempo, “chorar com os que choram e se alegrar com os que se alegram” é um conselho com toda a ambivalência da vida.
Acho que a imagem que traduz isso é o encontro do Rio Negro com o Solimões. De um jeito ou de outro, a força inexorável das águas não pode ser contida. Ela simplesmente acontece e arranca de nós admiração perante sua grandiosidade. As águas escuras se assemelham a um mar calmo numa extensão caudalosa gigante, caminhando até se posicionar lado a lado com as águas barrentas do Solimões. São densidades diferentes com o PH igualmente diferente que fazem com que cada rio tenha uma forma específica. Assim é a vida, assim é a morte, dois rios faces de uma mesma moeda.
Dia após dia, alguém está partindo e alguém está chegando. Em ambos os casos, sangra-se, quer seja no encontro marcado com a vida, quer seja no encontro marcado com a morte.
Ontem, começou a página 01 do livro escrito por Bianca.
Ontem, terminou a página escrita em vida por Diulinda Garcia, uma pessoa admirável por dentro e por fora, que espalhou amor, beleza e resistência. Natural de São João do Sabugi-RN, formada em Letras pela UFRN, atuou como professora de Língua Portuguesa e Literatura em escolas da Rede Pública do Estado; também, na Secretaria Municipal de Educação da capital do RN como especialista em projetos educacionais e também como Chefe de Gabinete. Membro do Memorial da Mulher, do Mulherio das Letras Nísia Floresta, da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte e da União Brasileira dos Escritores. Imortal da Academia Feminina de Letras e em nossos corações, abrindo nova página em nossa história e memória, deixando muitas saudades.
Sua poética permanecerá educando o olhar de tantos leitores para a vida e para a humanidade. São elas: Caminho do invisível (2022), Abstração (2008), Lucidez de navalha (2010), Sangra-se (2023). Além delas, suas tantas participações em antologias.
Encerro essa coluna de hoje com um poema de seu livro mais recente, que foi debatido no último clube de leitura do Mulherio das Letras Nísia Floresta, realizado em 26 de outubro de 2024, desejando um abraço fraterno com muito consolo aos familiares, aos amigos e às letras potiguares que estão enlutados por perderem uma voz tão representativa da literatura de autoria feminina. Diulinda, PRESENTE!
SANGRA-SE
Quando a palavra
tropeçar nos embates
emudecer, silenciar a voz
e o verbo desidratar
no varal do silêncio
retoma-se a luta
enfrenta-se
confronta-se.
Troca-se a palavra
pela ferida exposta
desata-se a atadura
deixa-se derramar
o sangue contido
sangrar é preciso
Sangra-se!
Foto de Elisa Elsie
Diulinda Garcia
(São João do Sabugi, 10 de janeiro de 1946 / Natal, 05 de novembro de 2024)
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Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
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