Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

07/03/2025 19h40
Oscar e etarismo
 
Contantin Stanislavski, certa vez, ao deixar seus ensinamentos sobre as artes dramáticas, disse: “Em Cena, não corram por correr, nem sofram por sofrer. Não atuem de modo vago, pela ação simplesmente, atuem sempre com um objetivo.” Foi com esse ator que também se dedicou a preparar seus pares que aprendi a amar a arte em nós mesmos e não a nós mesmos na arte. 
 
Na temporada deste ano, predominou entre as indicadas um traço: mais da metade se encontra na faixa dos 50+: Demi Morre (62), Fernanda Torres (59), Karla Gascón (52), Cynthia Erivo (38), Mikey Madison (25). 
 
Deixando as especulações de lado, é imprescindível resgatar informações importantes sobre as carreiras de Demi Moore e de Fernanda Torres. Além de serem mulheres 50+, ambas são atrizes com trajetória, experiência e maturidade cênica. Para além disso, ambas entregaram ao público nesta temporada personagens bastante diferentes do que costumavam realizar. Este é um elemento balizador para mostrar a versatilidade dessas profissionais que fazem cinema cinema. 
 
Demi Moore sempre foi lembrada como sex symbol. Agora, aos 61 anos, entregou aos fãs de cinema uma personagem forjada no estilo do "body horror". Por sua vez, Fernanda Torres, atriz com vasta experiência em comédia - um gênero difícil de fazer por exigir que o ator seja caricato e não tenha receio do ridículo - aparece em um papel dramático. Ambas proporcionaram ao público experiências singulares com potencial reflexivo e transformador. 
 
A crítica feita no filme A substância, que consiste em denunciar o etarismo violento existente no show business (extensivo à indústria cinematográfica), nitidamente saltou das telas para a premiação do Oscar. A indústria escolheu a novinha. Mikey Madison é a cara (e a bunda) mais nova da vez.  
 
Jamais deixaria de reconhecer o talento dessa jovem atriz que tem uma carreira inteira pela frente. É bem verdade que o enredo clichê de Anora traz a prostituição romantizada e foi “salvo” pela atuação de Madison. Quem assistiu ao filme Uma linda Mulher, com Julia Roberts, lançado em meados de 1990, certamente relembrou algumas cenas, pois há um “diálogo” entre as duas produções.  
 
Sob a direção de Sean Baker, foi entregue ao público um conto de fadas contemporâneo. Um ricaço russo se apaixona pela prostituta. Ponto. Não há bastidores que antecedem a entrada da personagem na vida de profissional do sexo. Não há anseios ou sonhos dessa mulher que exerce uma das profissões mais antigas do mundo, carregando um estigma social. A solução para a “mudança de vida” é baseada numa receita antiga: casamento (com uma pessoa rica). Esse é o tipo de narrativa que a indústria cinematográfica escolhe premiar. Nem vou entrar no mérito de a personagem não passar por grandes transformações como acontece com Demi Moore e Fernanda Torres em suas singulares atuações. 
 
O trabalho de um ator consiste em se desvencilhar daquilo que ele já é. Existem atores que seguem atados aos personagens, de forma a levar até os cacoetes adiante. Um exemplo é o Johnny Depp.  
 
O maior plot twist nesse resultado é percebermos que Demi Moore desempenhou papéis que sexualizaram o corpo feminino: Assédio Sexual (1994), Proposta Indecente, Striptease (1996). Quando realmente faz um filme com potencial simbólico marcante, singular e surpreendente, ela perde a estatueta para uma jovem em um papel que reforça um lugar contra o qual lutamos. Afinal, ser mulher é sobre algo muito além de bunda e peito. 
 
Demi Moore e Fernanda Torres ensinaram a amar a arte em nós mesmos, diferente da atuação da Mikey Madison com o cacoete mais clichê de quem ama a si mesma nas artes e ainda precisará de muito chão para chegar à maturidade cênica. 
 
Afastando o Complexo de Vira-Lata que sempre nos persegue como um fantasma, temos muito o que comemorar neste Dia Internacional da Mulher, pós-carnaval. 
 
Fernanda Torres foi capaz de unificar lados polarizados ao levar tantas pessoas para dentro da casa de Eunice Paiva. Convidar pessoas a se colocar no lugar do outro é uma das funções da arte, tarefa cumprida com maestria. Também, comemoramos uma bilheteria no Brasil e no resto do mundo; a repercussão na memória dos brasileiros, não deixando que essa narrativa fosse varrida para o esquecimento que é um tipo de morte. Por fim, comemoramos o fato de que foi uma mulher - Dilma Rousseff - que começou todo esse movimento ao instaurar a Comissão da Verdade. Sem isso, Marcelo Rubens Paiva não teria escrito as memórias e Walter Salles nem teria feito Ainda estou aqui. 
 
Enfim, neste Dia Internacional da Mulher, temos muito o que comemorar além do oscar (histórico) de melhor filme estrangeiro. No combo, vem uma carreira internacional para a Fernanda. 
 
Quanto a nós, ainda estaremos aqui, torcendo pelo cinema nacional e pela materialização de histórias fortes como a de Eunice Paiva para que ganhem o mundo, inspirando pessoas. 
 
Kalina Paiva 
 
Professora do IFRN, pesquisadora e escritora.

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