Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
Quantas histórias cabem em uma vitória?
Agosto chegou como uma coroação ao Julho das Pretas, com duas grandes ginastas mundiais no pódio das Olimpíadas de Paris, a norte-americana Simone Biles e a brasileira Rebeca Andrade, respectivamente ouro e prata na modalidade individual da última quinta-feira. Para sextar, o ouro conquistado pela judoca Beatriz Souza joga brilho nessa semana de lutas, superações, conquistas e aprendizados.
Na competição de ginástica, não tivemos a impressão de que a brasileira perdeu para a afro-estadunidense. No páreo, ambas foram gigantes, mutuamente demonstrando respeito e admiração. Por trás desse gesto, há algo maior que extrapola o espírito esportivo, existe a luta das mulheres pretas, vivendo em países conhecidos pela grande desigualdade social e racismo.
A ginástica já foi mais branca e racista, chegando a penalizar competidoras negras em cujos cabelos apareciam frizz, dando um aspecto desgrenhado, mesmo depois de todos aqueles movimentos de saltos e giros que a modalidade exige. Após a competição desta semana especificamente, em posts nas redes sociais, a número 1 do mundo, após ganhar ouro para o seu país, teve as suas madeixas preconceituosamente colocadas em foco. Estou falando da mesma sociedade que a criticou duramente pela sua desistência em Tóquio, no ano de 2021, não demonstrando alguma compaixão pela sua saúde mental. Antes de repararem na volta por cima da Simone Biles, escolheram comentar o seu cabelo.
Créditos: Reprodução / Redes Sociais @rebecarandrade
Nascer mulher já nos confere um status: somos naturalmente atletas perante a prova “corrida com obstáculos” da vida. O detalhe é que não nos aposentamos. Tornar-se mulher competindo em uma Olimpíada é um feito histórico em todos os sentidos.
Como estamos em pleno Agosto Lilás, mês de enfrentamento à violência, sinto-me impelida a mencionar não apenas o episódio com o cabelo de Biles, mas também a situação pela qual está passando a velocista brasileira Flávia Maria de Lima que, no momento mais importante da carreira, convocada para representar o país nos 800 metros do Atletismo, carrega consigo um drama da vida: o pedido da guarda da filha, movido pelo seu ex-companheiro, que a acusa de abandono materno, devido à viagem para as competições. Quando já não estamos bem, as coisas doem um pouco mais. A constatação disso fica evidente no vídeo publicado pela atleta em tom de desabafo. Nessa última sexta, a velocista chegou a liderar parte da prova, mas perdeu força e não avançou diretamente à semifinal. Resta enfrentar a repescagem do atletismo e, posteriormente, o processo que a espera no país, manobra jurídica do ex-marido que, nitidamente, interferiu em seu rendimento.
Quantas mais assim no Brasil que precisam enfrentar armas, sejam elas cortantes, de fogo ou jurídicas de seus ex-companheiros, os quais praticam violência de gênero (física, psicológica, patrimonial, entre outras) por não aceitarem o término da relação, desejosos por prejudicar a pessoa e sua carreira, usando o(s) filho(s) como escudo? Quantas mais assim no Brasil?
Olhando tudo isso de um ângulo interseccional, a atleta branca precisa resolver os trabalhos domésticos, o cuidado com os filhos para, em seguida, conseguir iniciar seus treinos. Observemos, então, as mulheres negras que, além disso, também precisam enfrentar a desigualdade, o racismo, o preconceito e a intolerância religiosa d-i-a-r-i-a-m-e-n-t-e, fato que as reposiciona para uma situação corriqueira de dororidade que, segundo Vilma Piedade, é uma dor específica das mulheres negras na luta pelos direitos civis.
Volto às histórias de vida de Simone Biles e Rebeca Andrade. As trocas de gentilezas durante uma prova e outra revelam admiração recíproca, antes de tudo, às situações com que cada uma teve que lidar na vida para subirem ao pódio: a norte-americana foi para o orfanato, após sua mãe perder a guarda por ser dependente química, tornando-se filha adotiva do seu avô biológico tempos depois; a brasileira viu a mãe ir a pé para o trabalho, cedendo-lhe as passagens do transporte coletivo para que pudesse treinar. Por sua vez, Beatriz Souza, perdeu a avó a um mês da competição, sua referência materna, já que foi criada por esta.
Antes de enxergarmos tudo isso como histórias de superação (e são, de fato!), faço um convite para não romantizarmos essas situações. Ao invés disso, deveríamos nos perguntar: onde estão as políticas públicas na vida das mulheres pretas e periféricas? Onde estava o Estado no intervalo de tempo do nascimento de cada uma delas ao pódio olímpico, quando trilhavam respectivamente caminhos do orfanato ao ouro, da pobreza à prata e do luto ao ouro?
Em suma, esse texto de hoje é um lembrete para não romantizarmos as lutas femininas, mas sim buscarmos inspiração na construção coletiva do ser mulher. Que possamos, a essa altura do campeonato, nutrir-nos com a sensibilidade compartilhada e a solidariedade política contínua. Assim, poderemos celebrar os Julhos das Pretas; enfrentar os Agostos Lilases; e resistir aos Setembros Amarelos.
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Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
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