Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
O futuro é ancestral
Tivemos uma sexta-feira tão promissora quanto turbulenta para as Letras. Acaso a vida não é assim? Enquanto uns festejam, outros estão enterrando um parente; enquanto uns estão viajando, outros estão fechando um ciclo, terminando um curso ou sendo laureado em alguma Instituição. A vida é uma linha dos batimentos cardíacos em um monitor de um frequencímetro: repleta de altos e baixos. Por isso, a coluna de hoje vai chorar com os que choram – convertendo pranto em saudade – e se alegrar com os que se alegram.
Ontem, começamos o dia dando adeus à escritora e jornalista Márcia Denser (1949 – 2024) e à pesquisadora de Letras Vernáculas Mônica Magalhães Cavalcante (1962-2024); e recebendo com indignação o ataque de três pitbulls à escritora Roseana Murray, culminando com a perda de um dos seus braços e uma das suas orelhas. Nas redes, não se falava em outra coisa. As Letras estavam enlutadas. Contudo, terminamos a sexta com Ailton Krenak tomando posse na Academia Brasileira de Letras, um sinal de que o que é belo não morre, ancestraliza-se.
Ailton Krenak é natural do vale do Rio Doce, uma região castigada pela extração de mineradoras. Deixou sua terra natal para ser alfabetizado aos 17 anos no Paraná. Desde sempre, esteve engajado nos movimentos em defesa dos povos originários, tendo participado da fundação da União Nacional dos Indígenas (UNI). Seu primeiro discurso histórico aconteceu em 1987, aquele no qual pintou o rosto com jenipapo, proferido na Assembleia Constituinte, ocasião em que contribuiu para aprovar a emenda constitucional que trata dos direitos dos povos originários – discurso este que foi mencionado pela ensaísta e crítica literária Heloisa Teixeira, ocupante da cadeira 30, no ato da posse dele como imortal da ABL. Esse Doutor Honoris Causa pela Universidade de Juiz de Fora ocupa a cadeira 24 da Academia Mineira de Letras e sua eleição para a ABL coincidiu com o aniversário de 35 anos da promulgação da Constituição de 1988, mostrando tanto que a História é cíclica quanto é reparada de tempos em tempos numa luta constante.
Antes de começar a cerimônia, podia-se ouvir um canto guajajara entoado na parte externa do Salão Nobre do Petit Trianon, sede da instituição centenária no Rio de Janeiro. Esse cântico anunciava que uma das maiores lideranças indígenas estava entrando na Casa de Machado de Assis, usando uma bandana confeccionada pelos povos originários não apenas para compor um look. A ancestralidade estava ali, quebrando os protocolos da Casa, em um discurso improvisado, sincero e genuíno em defesa dos 305 povos originários a quem o novo imortal fez alusão, partindo do poema “Eu sou 300”, de Mário de Andrade.
Seu discurso seguiu correu entre os presentes como águas que cortam aldeias: fluido, macio, assertivo. O filósofo, pensador, e agora imortal começou o rito, deixando uma marca originária, histórica: “O rito é uma das maneiras de a gente instituir mundos. A ideia de ordem e de caos deve estar muito relacionada com a nossa capacidade de produzir sentidos, e a produção de sentidos é um rito, uma reza, uma oração. É uma procissão como diz o querido Gilberto Gil, mestre Gil. É essa ritualização da vida que nos dá potência para ir além da nossa rotina de reproduzir cotidianos. (...) O rito nos saca desse lugar-comum e nos põe num lugar de criação de mundos” – afirmou Krenak.
Foi assim, criando mundos de palavras, que Krenak trouxe sabedoria, deu voz aos povos originários, aos afrodescendentes, às mulheres, deixando claro que a luta por direitos precisa permanecer encampada. Ocupar esse novo espaço é mais que uma reparação histórica, é o começo de um futuro que, segundo ele, é ancestral.
Agora, como imortal da ABL, o pensador brasileiro já entra com novos projetos, levando ideias visionárias. Um deles consiste em sugerir à instituição a criação de um portal colaborativo sobre estudos de línguas nativas brasileiras, mostrando que sua posse se converte em possíveis inovações.
O futuro é ancestral. Para construi-lo, precisaremos voltar o nosso olhar para esse passado que, por inúmeras vezes, sofreu apagamento. Krenak é a memória em curso, voltando com toda a força, impávida e urgente.
Sobre mim
Kalina Paiva, professora, pesquisadora, escritora e produtora cultural.
Natural de Natal-RN, é professora do IFRN, pesquisadora em Literatura Comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do Núcleo de Pesquisa em Ensino, Linguagens, Literatura e Mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN.
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