Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

03/05/2024 10h26
Os sonhos que nos movem
 
Escritores são seres que se assemelham à parabólica: vivem recebendo sinais. Enquanto a antena recepciona sinais de rádio e tv, em seguida, distribuindo-os, nós captamos histórias que ouvimos, vivenciamos ou sonhamos para transformamos em ficções e entregarmos aos leitores e leitoras um universo fabulado surpreendente.
 
Na coluna de hoje, partilho uma situação que pode ser curiosa para alguns, ou assustadora para outros. Farei isso em homenagem ao Dia Nacional da Literatura, celebrado no primeiro dia deste mês de maio. Independente de data, penso que a literatura deve ser comemorada todos os dias, pois acredito ser quase impossível que alguém sobreviva neste mundo sem ter acesso a algo sonhado, criado, fabulado. Também, por ser o mês em que se comemora o dia de Santa Sara Kali, padroeira dos ciganos, já que o fato tem a ver com esses povos.
 
Reservei este momento para trazer um exemplo do quanto as coisas experienciadas por quem conta histórias são matéria-prima para a imaginação. Escritores não apenas vivenciam um fato, mas também ficam remoendo no inconsciente que, segundo Freud, cria fantasias que nossa mente sã nunca ousaria imaginar. Do solo lá do inconsciente, nascem as narrativas. Algumas pessoas, inclusive, criam a partir de sonhos (Silvia Sol, multiartista natalense, recebeu através de sonho o início da canção Farol) ou pesadelos (Mary Shelley deu vida a Frankenstein).
 
Vamos à história?
 
Eu participava de um evento com pessoas amigas e parceiras na cultura, quando uma delas realizou uma performance artística, dançando uma música cigana. Durante a dança, ela percebeu a presença de um homem alto para a média nordestina, com olhos bastante expressivos e porte atlético, que passava próximo e fora atraído para o palco pelo inconfundível ritmo cigano. A questão é que a pessoa mirava nos olhos, não os desviando de forma alguma. Um olhar que, em dado momento, a desconsertou. Contudo, ela prosseguiu entregando à plateia beleza, verdade e arte.
Quando partilhou a história comigo, após a performance, pedi que ela descrevesse a pessoa, pois eu estava mediando e prestando atenção aos presentes. Cheguei à conclusão de que essa pessoa não existia, pelo menos não no plano físico. Perguntei para ela: “Será que não era um dos seus guias, cigana?” Ao que ela respondeu: “Eu vi. Ele acompanhou todo o movimento da gente. Como a música cigana atrai pessoas, não é?”
 
Na hora, nem me ocorreu pensar nas fotografias de todos que lá estavam. Depois, como uma máquina de ressonância que escaneia um corpo humano, fiz-me sentinela para observar as fotos do momento minuciosamente. Definitivamente, não existia aquela pessoa.
 
Não tenho medo de espíritos. Ainda assim, fui dormir com aquele mistério martelando a minha cabeça e sonhei com a cena. Porém, no sonho, eu também vi o tal homem misterioso. Era um cigano, pelo menos foi o que meu inconsciente revelou. 
Acordei com uma ânsia de deitar no papel as sensações tão reais que experimentei dentro daquele sonho, inserindo novos elementos, personagens, mudança de espaço e conflito – porque é isso que move o desenrolar dos fatos dentro de uma narrativa. O sobrenatural foi o barro em minhas mãos, que moldei até dar forma ao conto “O colar de esmeralda”, a ser publicado pela Editora Carnage em junho deste ano, especializada em narrativas de terror, suspense e ficção científica. Aproveito para deixar o Instagram onde são publicados os links com os editais. @editoracarnage
 
Fecho a coluna com um poema minimalista da potiguar Eveline Sin cujo trabalho aprecio: “uivar pro altar / erguido no peito / profundo é o templo / que chamamos dentro”. Escrever é uma espécie de uivo, se observarmos o quanto a nossa voz se projeta para o outro. Arrancamos das entranhas – nossas nascentes – as essências e desaguamos no que escrevemos.
 
Sobre mim
 
Kalina Paiva, professora do IFRN - Campus Natal-Central, é natural de Natal/RN. É autora de poesia e contos de terror. Gatilhos Poéticos (2022), Cantigas de amor e guerra (2023) são seus livros mais recentes. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN. É pesquisadora na área de Literatura, História e memória, e mídias. Instagram: @kalinissima

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