Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

10/05/2024 08h41
 
Cavalo ilhado sobre um telhado
 
Cavalo ilhado sobre um telhado na cidade de Canoas é o tipo de descrição que se assemelha a uma tela surrealista bem ao estilo de René Magritte, ou Giorgio de Chirico. Antes fosse. Parte desse título - ou variações dele - compõe manchetes, viralizadas nos jornais brasileiros de ontem para hoje, trazendo um equino como símbolo da resistência à enchente no Rio Grande do Sul, além de revelar a solidariedade das equipes de resgate. Nenhum a menos é o lema.
 
Reza a lenda que cronistas usam lupas para agigantar algo que passou despercebido pela população. Então, inspirada nesses mestres e mestras das narrativas sobre detalhes do cotidiano, vivenciados in loco, que sempre me convidaram a olhar a vida por outra ótica, escolho falar sobre a esperança, já que nos jornais a água e a lama lavaram as manchetes, as notícias, os artigos de opinião.
 
Também, trago comigo a inspiração do povo brasileiro que resiste, luta e encontra formas criativas de lidar com um problema que já havia sido anunciado por pesquisadores ao Governo do Estado do Rio Grande do Sul, entre eles, Marcelo Dutra Silva, professor do Instituto de Oceanografia (FURG), ecólogo e doutor em Ciências, presente na audiência pública 2022. Aproveito para deixar aqui o Instagram do pesquisador para que vocês assistam ao pronunciamento dele: @profmarcelodutradasilva.
 
É com essa mistura de bravura e criatividade, dividindo o cenário com o negacionismo da ciência, que eu me debruço sobre o teclado neste exercício da escrita, enquanto a minha memória recente arremessa as cenas mais dramáticas, alternando-as com as de solidariedade (sem perder a ternura, não é?) e de humor (sem romantizar, porém admitindo que o riso torna suportável a jornada).
 
Cada pessoa ressignifica o mundo e as relações sociais a sua maneira. Contudo há momentos em que furamos as bolhas ideológicas e nos encontramos todos na mesma encruzilhada da vida, reconhecendo-nos na figura de um animal. Nossa humanidade está por aqui, nos pequenos gestos, dando o ar da graça.
 
Bertrand Russel, filósofo britânico, em um texto que costumo levar para a sala de aula, intitulado Aquilo por que vivi, reconhece três paixões responsáveis por movê-lo: “o anseio de amor, a busca do conhecimento e a dolorosa piedade pelo sofrimento da humanidade”. Enquanto o amor e o conhecimento o tiravam do chão para o sonho, era o sofrimento que o fazia humano, colocando seus pés de volta em terra firme, convidando-o a um exercício genuinamente civilizatório.
 
Volte comigo para a imagem do cavalo. Você pode até dizer que ele teve a sorte de ser resgatado. Porém, para nós, o tempo de espera é a nossa referência balizadora de humanidade ou não-humanidade. Proponho um exercício: tente ficar quatro horas dentro de um hospital, sem celular. Ou quatro horas na fila de um banco. Por fim, quatro horas esperando alguém que se atrasaria por 15 minutos. Caramelo passou cincos longos dias, levando chuva e sem socorro.
 
Para uma sociedade ansiosa como a nossa, o tempo de espera nos aproxima (e muito) do nosso animal primordial. Nessas horas, tanto podemos pender para a energia selvagem (com possibilidade de descontrole) quanto para o outro lado da moeda, a domação. Que escolha se pode ter perante a força das águas, senão encolher-se e esperar a chuva passar? São as circunstâncias da vida que colocam rédeas sobre nós.
 
No fim das contas, humanos ou animais, somos apenas peças sobre um grande tabuleiro de xadrez na ilusão de que temos o controle de algo. Movemo-nos dentro das regras de um jogo maior que nós, cujas mãos enormes vão conduzindo as peças, uma a uma, em uma dança macabra tal qual o grand finale de O sétimo selo, de Ingmar Bergman.
 
 
Sobre mim
 
Kalina Paiva é Natural de Natal-RN, professora do IFRN, pesquisadora em Literatura Comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do Núcleo de Pesquisa em Ensino, Linguagens, Literatura e Mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN.
 
 

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