Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

12/07/2024 08h44
 
Carta para Iza
(Sobre a dororidade das mulheres negras)
 
“Penso duas vezes antes de falar”. Foi esse verso que me levou até você, Iza, quando ouvi pela primeira vez “Dona de mim”, uma canção que, entre tantas coisas, ensina a importância de saber usar a fala. Na coluna de hoje, vou usar a arma que tenho, a escrita – recomendação de Virginia Wolf na obra “Pensamentos de paz durante um ataque aéreo”, que adotei como um mantra.
 
Estava acostumada a ver você, voz potente de mulher preta num país racista e misógino, enfrentando tanta coisa para fazer seu nome. Na noite de quinta, vi o mulherão envolto pela vulnerabilidade que é a vulnerabilidade de todas nós, obrigadas pelas circunstâncias a atravessar com força, determinação e resiliência os momentos de abandono, sobretudo quando mais precisamos. Seria muito bom se tivéssemos acesso a cinco minutos de trailer da vida da pessoa com quem pretendemos estabelecer um elo, um vínculo. Mas “a vida é louca”, Iza, “a vida é louca” e, para enfrentá-la em todas as suas vicissitudes, existe um exército de mulheres reverberando hoje, dos seus corações para as redes sociais, o quanto são solidárias à situação que você atravessa agora.
 
Postagem da cantora Iza em sua página oficial no Instagram
 
Por ser uma pessoa pública, imagino como deve ter sido elaborar uma fala que contém um anúncio sobre traição, separação do marido e revelação da sua nova tarefa de gestar e criar Nala, na condição de mãe solo – nome modalizado para se referir às inúmeras mulheres que criam filhos sozinha, verdadeira família tradicional brasileira.
 
Aprendo com você, Iza. Entre tantas coisas, seu gesto nos ensina a antever situações e preciso reconhecer: apesar de muitas pessoas mencionarem a sua coragem, para além dela, eu vejo o quanto você foi cirúrgica. Com uma só declaração, cortou o mal pela raiz, libertou-se de um infortúnio, evitou fofocas e especulações sobre a sua vida privada, boicotou a monetização da informação maledicente e ganhou merecidamente as manchetes de todos jornais com a sua coragem. Com limão, se faz limonada, Iza. E a limonada é a bebida que degustamos na ciranda da dororidade.
 
Dentro de educações repressoras e nada libertadoras, mulheres são tão tolhidas a ponto de perderem esse “faro”, necessário à sobrevivência, Iza. A quem interessa essa perda do faro intuitivo, senão a um projeto machista que visa conduzir mulheres pelas veredas do alheamento ao real para serem entregues feito ovelhas ao matadouro?
 
Aqui no meu estado, Iza, onde você já residiu, uma mulher negra foi esfaqueada pelo parceiro em plena praça pública. Esse caso revela que, por mais experientes que possamos ser, ainda somos surpreendidas pela (não tão evidente) maldade humana. Fico imaginando as mulheres que perderam o faro... Dormi com sua declaração e acordei com essa notícia de feminicídio. A dororidade não sai no jornal, já as revelações sobre as vidas privadas de pessoas públicas para preencherem a curiosidade alheia...
 
Sentimos o custo emocional de tudo isso pela sua fala, Iza, pela sua perplexidade em ter que se colocar publicamente para evitar que palavras ensandecidas ganhassem um palco para mero alívio dos frenesis das pessoas.
 
Você passou suave, como uma delicada borboleta, pedindo respeito pelo seu momento, recolhendo-se. Há momento de ficar quieta, Iza. Você sabe, pois cantou isso. Como bem escreveu a poeta Eunice Arruda, “Sim há as horas de trégua. Quando se afiam as facas.” Será assim até o momento em que você se reinventar. E você se reinventará, Iza, voltando mais forte e mais firme em seus propósitos.
 
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Sobre mim
 
Kalina Paiva, professora do IFRN - Campus Natal-Central, é natural de Natal/RN. É autora de poesia e contos de terror. Gatilhos Poéticos (2022), Cantigas de amor e guerra (2023) são seus livros mais recentes. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN. É pesquisadora na área de Literatura, História e memória, e mídias. Instagram: @kalinissima
 

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