Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

03/11/2023 09h46

 

Um pedaço da gente se chama saudade

 

Existe um escritor português cuja voz escolhi abrir a coluna de hoje. Na obra A criança em ruínas (2001), ele escreveu um poema daqueles que abreviam a distância (física) entre nós e os que amamos, através da memória:

Na hora de pôr a mesa, éramos cinco:

o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs

e eu. depois, a minha irmã mais velha

casou-se. depois, a minha irmã mais nova

casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,

na hora de pôr a mesa, somos cinco,

menos a minha irmã mais velha que está

na casa dela, menos a minha irmã mais

nova que está na casa dela, menos o meu

pai, menos a minha mãe viúva. cada um

deles é um lugar vazio nesta mesa onde

como sozinho. mas irão estar sempre aqui.

na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.

enquanto um de nós estiver vivo, seremos

sempre cinco.

                                            (José Luís Peixoto)
 

Se é bem verdade que fomos ensinados a nos alegrarmos com os que se alegram e a chorarmos com os que choram, acrescento o sentir saudade com os que sentem. E hoje é esse dia em que celebramos a memória dos que não estão conosco no plano físico.

Parando para pensar, emitimos tantas opiniões sobre o passado, principalmente quando tomamos mais distância dele. Fazemos tantos planos para o futuro (o final do ano já está às portas). Mas somos distraídos com o presente. O dia de hoje nos ensina sobre o presente porque é diante da morte que ressignificamos a vida e nós o fazemos pelas vias da memória.

No final dos anos 1990, eu era uma adolescente deslumbrada com a vida. Ia para as festas cuja segurança era feita por ele, meu pai, delegado da Polícia Militar. Recordo que eu ficava chateada quando ele dizia: “Está na hora de ir para casa.”, exatamente no melhor da festa. Do alto daquela experiência, ele sabia o que estava fazendo, já eu não tinha a dimensão da proteção dele para com a minha vida.

Essa simples experiência me faz trazer aqui a relação com o presente e com o passado. Hoje, eu tento poupar meus filhos dos perigos do mundo assim como meu pai, um dia, fez comigo. Meus filhos não entendem porque o presente, às vezes, nos deixa deslumbrados e distraídos e só temos a exata compreensão quando dele tomamos distância.

Sinto-me impelida a trazer outro exemplo que viralizou no mundo ontem. Dessa vez, uma mãe e uma filha. No Hospital Indonésio, situado em Gaza, a médica palestina Ghada Abu Eida estava de plantão, cuidando de várias vítimas do bombardeio, trazidas já inconscientes pelos maqueiros. De repente, no corredor, ela percebeu dois maqueiros passando de forma veloz com uma menina. Ela reconheceu que aquela vítima era a sua filha sendo levada para a mesa de operação. Naquele momento, Dra. Ghada atravessa o corredor, numa corrida cansada de quem já está no limite da exaustão, gritando pela filha. Foi amparada pelos colegas que a abraçaram e a seguraram, pois ela vai perdendo as forças aos poucos dentro de um sentimento que nenhum pai deseja ter, o de impotência perante o mundo e suas violências.

Não sei se a criança sobreviveu porque o vídeo captou um momento do presente. Mas meu coração estava ali com aquela mãe. Meu coração está vivendo o presente e meus olhos não estão distraídos. Como bem escreveu a escritora potiguar Carmen Vasconcelos no conto Flor de Querosene: “A gente só é criança enquanto a eternidade se mantém intacta. Quando ela dilacera, a gente amadurece. Aí sente a espessura das desilusões.”

Não gosto muito do nome “finados”, porque não termina aqui, embora entenda que o léxico busca colocar uma cortina que separa o mundo dos vivos do mundo dos mortos ao nomear dessa forma. Seguirei me alegrando com os que se alegram, chorando com os que choram e sentindo saudade com os que sentem.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).