Kalina Paiva

22/03/2024 11h29

 

Dois pesos e duas medidas

 

A Espanha, país que tem sido exemplo nos protocolos de enfrentamento à violência contra a mulher, revela-se branda quando o assunto é a punição do agressor. Nesta semana em que estamos acompanhando os desdobramentos do caso Daniel Alves, constatamos que basta pagar a fiança para que o estuprador cumpra sua pena em liberdade.

A respeito dessa situação, Leila Pereira, presidente do Palmeiras, declarou: Ninguém fala nada, mas eu, como mulher aqui na chefia da delegação, tenho que me posicionar sobre os casos do Robinho e Daniel Alves. Isso é um tapa na cara de todas nós mulheres, especialmente o caso do Daniel Alves, que pagou pela liberdade. Acho importante eu me posicionar. Cada caso de impunidade é a semente do crime seguinte.”

No Brasil, se um homem é condenado e preso por estupro (crime imprescritível e inafiançável), dentro do presídio, será vítima de crime idêntico no seu encarceramento. Há uma espécie de "Lei de Talião" (Aquela que deu origem ao ditado “Olho por olho e dente por dente”), extraoficial, que orienta a conduta entre os detentos. A lógica que a fundamenta é o sentimento de impotência do apenado para com as mulheres da sua vida: "aquela vítima poderia ter sido minha mãe, minha filha, minha irmã ou esposa, enquanto estou aqui dentro encarcerado".

O objetivo da coluna de hoje não consiste exatamente em trazer à memória os casos de estupro (seguidos ou não de feminicídio) já ocorridos, envolvendo jogadores brasileiros. O foco está no fato de a sociedade afiançar a dor das mulheres. Acrescento a pergunta: “Quanto vale a dor de um estupro?

Antes de chegarmos à última fase de um problema, no caso, a condenação de um homem por crime de estupro, convido-os a voltar até o sementeiro desse problema social. Acredito ser importante fazer o percurso de volta para entender o ponto em que estamos agora. Tudo começa pela educação.

Cada vez em que os pais se levantam contra professores, acusando-os de doutrinadores, veiculadores de “ideologia de gênero”, conceito pejorativo que uma parcela da sociedade criou para justificar o impeditivo de uma educação libertadora para estudantes, está colaborando para que casos como o do jogador Daniel Alves sejam uma constante na sociedade.

Cada vez em que os pais estabelecem tarefas domésticas à filha e não ao filho, está colaborando para a manutenção de um status quo que relega à mulher o papel de servir o outro, romantizando a servidão e acostumando-a a ser subserviente aos “homens da casa”, quando, na verdade, esse papel de manutenção da vida cabe a todas as pessoas que convivem sob o mesmo teto.

São construções sociais que, de grão em grão, se agigantam até erguer muros, promovendo um apartheid de gênero.

Uma vez, ouvi uma amiga comentar que o direito está sempre um passo atrás da sociedade. Explico. Quando uma lei é criada, parte de uma necessidade social ou de um problema que se arrasta há anos, décadas ou séculos. A “providência jurídica” aparece quando o problema está impregnado nas malhas sociais.

O estupro é um problema antiquíssimo e além fronteira geográfica, cultural, com o qual ainda lidamos em pleno Século XXI. A Constituição brasileira (e, sobretudo, a espanhola - já que o exemplo citado envolve ambos os países) carece de adequações nos textos jurídicos que versam a respeito desse crime.

Cada nação, ao longo da História da humanidade, dedicou tratamento a esse tipo de abuso, o sexual.

Como tive uma educação judaico-cristã, faço um breve recuo no tempo para recordar o Código de Hamurábi, entre os séculos XVIII e XVII a. C., que trouxe punição com pena de morte ao homem que fosse flagrado com uma mulher virgem.

Há vários relatos bíblicos que descrevem com riqueza de detalhes as consequências graves para os estupradores, exceto quando a pessoa pertence à elite.

Davi – na condição de rei – tomou para si a esposa de Urias. Depois, enviou seu fiel escudeiro para a frente de batalha para ser morto, casar com a viúva e esconder seu delito. Fico me perguntando se um homem do povo fizesse algo parecido. Certamente, estaria nos relatos dos que receberam pena de morte.

Ainda na família do referido rei, temos a tocante história de sua filha Tamar, exemplo que me deixou impactada quando li na adolescência – com a consciência do que significa a violação de um corpo.

Amnom, meio-irmão mais velho dela, fingindo-se doente, solicitou que Tamar fosse enviada a seus aposentos para servi-lo, ocasião na qual a violentou.

O que mais me incomoda nessa história é o silêncio de Davi. Apenas Absalão tomou as dores da irmã, consolando-a. O preço alto desse silêncio: Absalão tirou a vida de Amnom, herdeiro do trono, e posteriormente morrer no Monte Efraim.

Tradicionalmente, a violação de mulheres tem sido tratada com dois pesos e duas medidas quando o estuprador pertence a determinado segmento social.

Está mais que na hora de darmos um basta nisso.

Sobre mim:

Kalina Paiva, professora, pesquisadora, escritora e produtora cultural.

Natural de Natal-RN, sou professora do IFRN, pesquisadora em Literatura Comparada e mídias e escritora de poesia e contos. Líder do Núcleo de Pesquisa em Ensino, Linguagens, Literatura e Mídias (NUPELLM) do IFRN e membro do Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-rio-grandenses. Membro da União Brasileira dos Escritores - Seção Rio Grande do Norte (UBE/RN), da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do RN (SPVA), do Mulherio das Letras Nísia Floresta, e da Associação Literária e Artística de Mulheres Potiguares (ALAMP); Coordenadora de Letras e Literatura do Movimenta Mulheres RN.


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