Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

27/12/2024 05h00
Fechar ciclos
 
Finais de ano sempre convidam à autoanálise, à reflexão. Aliás, a própria vida se encarrega de nos levar a fechar ciclos, se desejarmos receber algo novo. A gente olha para o ano que está indo embora e faz um balanço do que viveu e do que não conseguiu pôr em prática: a promoção no trabalho versus a academia não iniciada; a chegada de um novo filho versus a dieta adiada; o aperto financeiro versus a viagem cancelada; a insatisfação no trabalho versus a mudança de emprego... Ninguém vê os bastidores dos sacrifícios que precisamos fazer, das renúncias e de tantas coisas que acontecem ao mesmo tempo.
 
A impressão que tenho é: 2024 se despede como uma verdadeira prova de fogo. Sempre que falava com pessoas ao meu entorno, percebia que elas estavam em situação semelhante: correndo e com muitas coisas para dar conta. Matando um leão por dia. Esse ritmo frenético subtrai de nós a capacidade de observarmos o que conquistamos. E a sociedade acelerada cobra aquilo que não entregamos a ela.
 
Já que citei o fogo – purificador, consumidor e simbólico em várias culturas por agregar em torno de si morte e renascimento – trago algumas lições da natureza para educar o nosso olhar sobre a nossa relação com o mundo. Para lidar com o fogo, as plantas nos ensinam saídas com seus próprios exemplos. Eis algumas lições como cada uma delas lida com esse elemento.
 
Algumas crescem estrategicamente em lugares onde o fogo não chega. Estar em um local seguro é uma forma de evitar o confronto direto. Contudo, caso seja inevitável, deixo um conselho de Sun Tzu, escritor e estrategista de guerra, que advertiu sobre estudar e conhecer o território onde a batalha acontecerá antes de partirmos ao ataque, pois a natureza pode ser nossa maior aliada ou a causa da nossa ruína. No fim das contas, o melhor mesmo é evitar a guerra.
 
Já os manguezais, por exemplo, usam outra estratégia: firmam suas raízes nas águas – elemento de oposição ao fogo. Esse bioma cresce junto, entrelaçado, firmado nas águas que renovam suas folhas. Como bem cantou Luedji Luna, “bom mesmo é estar debaixo d´água”.
 
Há outras plantas, como os pinheiros, que crescem, engrossam a casca e se autopodam nas partes mais baixas para que os galhos mais vulneráveis caiam e não sejam afetados nas folhas, partes mais frágeis. Assim, conseguem resistir em suas camadas de proteção. Os pinheiros são disciplinados, focados e cirúrgicos. Com eles, aprendemos a cortar coisas dentro de nós mesmos para prosseguirmos de pé. 
 
Por sua vez, existem aquelas que fazem do solo seus bunkers, enterrando suas sementes para que, após o incêndio, permaneçam formas de reexistência de seus pares.
 
As estevas, por exemplo, precisam passar pelo fogo para germinarem e se desenvolverem. Acossadas por ele, as sementes dessa espécie cujas flores são fascinantes caem no solo e permanecem enterradas em um estado de “dormência”. Podem passar anos assim.
 
Quando um incêndio destrói a floresta, o fogo faz com que as sementes das estevas despertem, após atingirem temperaturas elevadas. Em virtude disso, são as primeiras a cobrirem a terra com vida e um colorido, após um incêndio.
 
A natureza é múltipla, por isso nem toda semente resiste ao fogo, reagindo de formas diferentes. Lembro daquelas que necessitam desse elemento para fragilizar a casca, auxiliando-as a romper o “casulo” para florescer novos brotos.
 
O que podemos fazer com esses segredos das plantas para resistirem ao incêndio senão levá-los como exemplo para as nossas vivências? O fogo pode simbolizar muito bem os desafios da vida. Cada um de nós é uma plantinha com sementes dentro de si sobre as quais somos responsáveis.
 
Não sei exatamente se, para enfrentar o fogo, você precisa ir a um lugar bem longe dele; estar firmado em águas com um grupo de apoio a você entrelaçado; esconder-se em um abrigo, longe de tudo e de todos onde só exista silêncio – às vezes, até por não ter uma rede de apoio; enfrentar o fogo, resistindo ao calor e protegendo suas sementes. O importante é respeitar a sua natureza nesse sistema evolutivo, tratando as dores silenciosas, muitas vezes ocultadas por um sorriso. Ser uma pessoa à prova de fogo não significa estar no front o tempo todo. Esse texto não é sobre plantas. É sobre resistir aos incêndios inevitáveis da vida.
 
KALINA PAIVA
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
 

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