Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
17/01/2025 13h22
As monocórdicas da Ditadura
No Brasil, resistência é uma palavra que conhecemos na prática porque a exercitamos cotidianamente. Diria que “ser brasileiro” é um sinônimo perfeito para ela. Desde a colonização luso-europeia, que trouxe um projeto político de poder pautado na exploração, não tivemos sossego e fomos obrigados a trocar nosso calendário vivido de forma sustentável pelo tempo contado por “ciclos” - o da vez é o do nióbio, do qual somos detentores de 90% no mundo.
Resistimos à espoliação de nossas riquezas naturais; resistimos à imposição religiosa, sincretizando ritos e credos para não serem varridos de vez; resistimos ao apagamento cultural; resistimos às ditaduras (tivemos duas grandes, a de 1937 e a de 1964, além de uma velada cujo ovo continua chocando desde 2019 auxiliada pelo imperialismo norte-americano de feições tecnofeudalistas).
Nesse nosso novo museu de grandes novidades, o tecnofeudalismo, termo criado pelo economista francês Cédric Duran, encarrega-se de criar a ilusão de avanço e progresso para sustentar uma nova forma de relação social que mira no retorno às condições similares à exploração e ao domínio exercido pelos senhores feudais. Em sua tese, intitulada Technoféodalisme: Critique de l'économie numérique, o professor nos leva a refletir sobre os níveis de vigilância, exploração, dependência e controle produzidos por grandes empresas de tecnologia, tais como o Google, o Facebook, o Tiktok, entre outras.
Dentro desse contexto que envolve o controle midiático, os da resistência criam seus mecanismos. São influenciadores que trazem outras leituras do mundo, perfis de jornalismo independente e as bolhas ideológicas que militam. Para materializar como essa resistência acontece, vejamos uma situação envolvendo a indústria cultural.
No último Globo de Ouro, embora tenha sido laureado pela atuação de Fernanda Torres que arrematou o prêmio na categoria de melhor atriz de drama, “Ainda estou aqui” não trouxe o prêmio de melhor filme. Isso desencadeou uma reação em cadeia. Brasileiros invadiram a página do evento (Vale lembrar que o Troféu Globo de Ouro surgiu em 1944 e nada têm a ver com a Rede Globo que foi criada em 1965, em plena Ditadura Militar brasileira) para deixar mensagens de apoio à atriz brasileira, não sem levar dura críticas ao rival “Emília Perez”, uma produção francesa que apresentou a cultura mexicana, de forma caricata, a ponto de os mexicanos se posicionarem nas redes em favor do filme brasileiro, sobretudo quando o jornal Le Monde desmereceu a atuação de Fernanda Torres, insultando-a de monocórdica, uma afronta para o país que sabe fazer (muito bem) um samba com uma nota só. Aqui, uma nota só promove movimento, cadências... Quem não entende isso é ignorante nos quesitos vida, arte e cultura brasileira.
Antes de falar sobre a sinopse do filme rival, é válido acrescentar que o diretor francês optou por contar uma narrativa sobre o narcotráfico em forma de musical, uma “comédia criminal”. (Fiquei pensando como os franceses reagiriam se o México produzisse uma comédia sobre o Massacre da Noite de São Bartolomeu, convocando apenas atores mexicanos, retratando a França e seu mal cheiro pelos inúmeros cadáveres espalhados - “Perfumes da Rainha Margot, o musical”)
O filme reforça estereótipos com suas velhas visões eurocentradas sobre os povos latinos... Não importa a localização do México no mapa, é lá que começa a parte periférica das Américas, no quintal dos EUA. Na visão eurocêntrica, abaixo dos EUA é tudo quarto de despejo: somos todos latinos. E nem será abordado aqui o que a comunidade LBTQUIAPN+ está pensando a respeito do oportuno aproveitamento da pauta trans...
Mas, afinal, do que trata “Emília Perez”? Basicamente, a protagonista da película é a chefe do narcotráfico mexicano “Manitas”, que busca a ajuda da advogada Rita (Zoe Saldaña) para realizar uma cirurgia de redesignação genital, tornar-se mulher e, com isso, abandonar o narcotráfico. Assim, ela se torna Emília Pérez (papel principal interpretado pela atriz transgênero espanhola Karla Sofía Gascón). Jessi del Monte (Selena Gomez) é sua esposa na trama. Esqueçam o contexto e a cultura mexicana, quando forem assistir. O compromisso da direção é com outros aspectos, objetivando o mercado.
Segundo o diretor Jacques Audiard, o filme foi escrito para atores mexicanos, porém ele não encontrou nativos à altura para interpretar os papéis - Ou será que os atores mexicanos não aceitariam mostrar um México cuja cultura foi ignorada e descontextualizada? - mas escalou Selena Gomez cujo espanhol (duvidoso) causou indignação na classe artística mexicana, a qual apontou o conjunto da obra como um produto, fruto da hegemonia branca.
A enxurrada de críticas nas redes tem pesado na corrida pelo Oscar. Pelo visto, o Le Monde tentou uma manobra midiática ao insultar a atuação de Fernanda Torres, porém as reações em cadeia em favor da atriz atacada acabaram dando força a um movimento em prol do cinema brasileiro.
Enquanto os EUA lutam para apagar as chamas, motivo que causou o adiamento da revelação dos indicados ao Oscar 2025, a atriz brasileira segue com a rotina de entrevistas em vários programas de TV norte-americanos. O público de lá está conhecendo agora a grande atriz que já faz parte da nossa História.
É bem verdade que uma estatueta hollywoodiana confere status, mesmo que saibamos da existência das costuras e atalhos políticos vindos da parte de atrizes que oferecem jantares luxuosos como tentativa de influenciar jurados, como foi o caso da Nicole Kidman quando o Troféu Globo de Ouro estava prestes a acontecer.
Mas, para nós, uma missão muito maior foi cumprida no Brasil: a de resgatar a memória brasileira sobre um acontecimento que, volta e meia, nos assombra. A memória de Eunice levada embora por uma enfermidade representa bem a enfermidade coletiva em que estamos. O Brasil estava esquecendo essa memória, pois as novas gerações estão distantes dela. O tempo, que chega para todo mundo, nos devora mesmo e a única ferramenta que temos para combater o esquecimento é a memória. Nesse ponto, a arte é aliada porque passa o bastão, ao criar uma tradição que permanecerá reverberando (e por que não ensinando?) para as novas gerações.
Fernanda Torres no Globo de Ouro (Foto: reprodução do Instagram Golden Globes)
Em uma de suas entrevistas, Fernanda Torres falou do seu compromisso com Eunice, ressaltando a árdua tarefa de viver nas telas essa mulher que precisou se reinventar em vida. Trata-se de uma dona de casa cujo marido sai para prestar um depoimento e nunca mais volta (nem seus restos mortais). Essa mulher fica vagando em busca de resposta, enquanto precisa cuidar de cinco filhos, tornando-se a provedora da casa, tendo que voltar a estudar e se capacitar para um ofício, enquanto sua vida é vigiada dia e noite pelos algozes que assassinaram o seu esposo. Por fim, ainda tem que esperar 25 anos para receber uma certidão de óbito.
Eunice, em sua humanidade, tenta preservar seus filhos e se mantém... monocórdica? É isso mesmo, Le Monde? Eu só teria uma única pergunta para o jornalista que escreveu aquela matéria: como uma pessoa deve se comportar em uma Ditadura nos anos mais violentos de chumbo, sob uma vigilância sem medidas? (Lembrando que os meios de comunicação sempre são os primeiros a serem amordaçados) Essa personagem foi concebida em um contexto de tragédia. E na tragédia, se você começa chorando, entrega os pontos – Conselho de Fernanda Montenegro à filha. A nossa heroína trágica atravessa o inferno numa resignação à semelhança de Antígona. Era isso ou teria um fim trágico como Zuzu Angel que decidiu usar sua fama para reivindicar o corpo do filho (morto pela Ditadura também), terminando morta em um “acidente”. Eis as “monocórdicas”.
Em dueto, Chico Buarque e Milton Nascimento cantaram “Como é difícil acordar calado” em um período desses. Em regimes totalitários, não há escapatória: independente da escolha, tanto o monocórdico silêncio quanto a monocórdica palavra que protesta custam muito.
Nessas veias abertas da América Latina, a memória é uma forma de resistência. Por causa do filme, uma onda de depoimentos tomou conta das redes sociais nas últimas semanas. Familiares e amigos das vítimas da Ditadura Militar no Brasil partilharam suas memórias e tal atitude serve para acender um alerta na juventude que anda flertando com líderes fascistas. Além de servir como alerta, todos esses depoimentos deixam um recado à sociedade brasileira: ainda resistimos aqui.
Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
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