Andreia Braz

05/09/2020 18h22
 
Um bate-papo sobre crônica
 
 
Escrever não é minha razão de viver. Viver é que é minha razão de escrever. 
                                                                                               António Alçada Baptista
 
 
A convite do professor Cláudio Everton Martins, amigo de longa data, participei de um bate-papo virtual com alunos do 6º ao 9º ano de uma escola particular de Natal, Conceito – Colégio e Curso. Professor de português, espanhol e francês, além de revisor de textos, Cláudio é apaixonado por literatura e sabe da importância de trabalhar a literatura potiguar na escola. Afinal, não fazemos parte do eixo Rio-São Paulo e temos de trabalhar muito para que a nossa produção tenha o alcance merecido no mercado editorial. Não por falta de qualidade. O tema do não poderia ter sido melhor: o ofício do cronista. 
 
Adoraria ter conversado com esses meninos e meninas em uma sala de aula ou mesmo no auditório da escola, mas o isolamento social imposto pelas autoridades de saúde não nos permite ainda esse tipo de atividade. De todo modo, é sempre muito gratificante poder falar sobre a escrita e temas afins. Aliás, falar sobre literatura é uma das coisas que dão sentido a minha existência. O fazer literário é algo sagrado para mim. Não posso imaginar minha vida sem os livros, sem a escrita. Como disse Clarice Lispector, em uma de suas crônicas, “E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo”.  Que bom que a tecnologia nos permite esses encontros, sobretudo em um momento tão delicado como esse que estamos vivendo.
 
Inicialmente, após uma breve apresentação da autora, conversamos um pouco sobre o gênero crônica e ressaltamos a importância de Rubem Braga, único escritor brasileiro a se consagrar exclusivamente como cronista. A propósito, estou lendo uma coletânea do autor, “200 Crônicas Escolhidas” (Record, 2016). Os textos, escritos entre 1935 e 1977, foram selecionados pelo próprio autor, com base na seleção original do amigo Fernando Sabino. Após essa leitura pretendo retomar a biografia do autor, “Rubem Braga: um cigano fazendeiro do ar” (Globo), do jornalista Marco Antônio de Carvalho. Afinal, Rubem Braga é leitura obrigatória, no bom sentido, para quem deseja conhecer o melhor da crônica brasileira, assim como Lima Barreto, Rachel de Queiroz, Vinicius de Moraes. Minha paixão pelo autor vem dos tempos de escola, quando descobri a coleção “Para Gostar de Ler”, da Editora Ática. O tempo era curto e não me alonguei nos comentários sobre o escritor capixaba e sua obra, o que seria tema para um outro evento.
 
Uma das coisas mais estimulantes desse encontro foram as perguntas e observações dos alunos sobre o meu processo de escrita, minhas influências literárias e minha relação com a literatura de modo geral. Posso dizer que minha paixão pela escrita ganhou força ainda na adolescência, época em que costumava escrever diários e cartas com muita frequência, alguns dos quais permanecem guardados. Algumas dessas cartas nunca foram entregues aos seus destinatários. Na infância o contato com livros foi pouquíssimo. Minha mãe não sabe ler nem escrever e, além disso, não tínhamos acesso a bibliotecas ou outros espaços onde eu pudesse encontrar livros, revistas. No entanto, uma atitude de uma criança marcou essa época de forma muito positiva e talvez meu caminho tivesse sido outro não fosse por essa menina tão especial. Uma amiga da escola, Uiadja Holanda, me emprestava suas revistinhas da Turma da Mônica, e certamente meu amor pela leitura nasceu ali. Vivemos a alegria do reencontro no início desse ano e não saberia descrever a emoção de poder abraçá-la novamente. Não pude conter as lágrimas quando ela chegou de surpresa para me receber na rodoviária. Estudamos juntas na terceira série e desde então nunca mais havíamos nos encontrado. Ela mora em Garanhuns e eu em Natal.
 
Voltemos ao bate-papo com os alunos do colégio Conceito. Dentre as perguntas mais marcantes, destaco duas, as quais comentarei em seguida. Uma das questões me fez revisitar uma época muito especial da minha juventude, os tempos de Cefet, onde fiz o curso técnico de Turismo, uma época em que eu escrevia bastante e quando surgiram as primeiras crônicas. A pergunta foi esta: “O que lhe motivou a escrever o primeiro texto?”.
 
As questões de ordem social sempre me causaram preocupação, e foi uma notícia de jornal impactante que me levou a escrever uma das primeiras crônicas. Em 1999, um certo prefeito de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, decidiu “limpar” a cidade e colocou alguns moradores de rua em um ônibus para serem despejados em outras cidades. A indignação perante aquele fato me levou a escrever e a indignação perante as injustiças do mundo continua me movendo a escrever e a tentar, de algum modo, contribuir para a construção de um mundo melhor, mais humano e mais solidário, por mais utópico que isso possa parecer. Afinal, “a injustiça não se resolve”, como escreveu Drummond.
 
Vamos à segunda questão. E o que dizer quando alguém lhe faz esta pergunta: “Qual a sua maior inspiração para escrever”? Não pensei muito para respondê-la porque a resposta é também a minha razão de existir. A minha maior inspiração para escrever são as pessoas. Não há nada mais fascinante do que ouvir e contar histórias. Sou capaz de ficar horas a fio escutando a história de vida de uma pessoa e depois mais outra quantidade de tempo transformando em texto aquelas vivências. E que alegria é poder contar a história de pessoas simples, de pessoas que não são notícia de jornal, mas inspiram tanta gente por sua coragem, sabedoria, amor ao próximo, dedicação ao trabalho, desejo de construir um mundo melhor. Por isso decidi contar a história de Manuel Santos, cordelista que vende seus livretos na passarela de Mirassol, a história de Letícia Fernandes, violoncelista da Orquestra de Violoncelos da UFRN, a história de seu José, que recolhe lixo reciclável para vender em uma cooperativa do bairro onde mora...
 
Ficaria horas conversando com aqueles meninos e meninas sobre a magia da crônica e a importância da leitura e da escrita na forma como enxergamos o mundo e os que estão ao nosso redor. O sociólogo e crítico literário Antonio Candido tinha toda razão quando disse que a literatura humaniza e nos liberta do caos. Para ele a literatura tem de ser vista como um direito básico do ser humano. O mundo seria outro se todos tivessem acesso à literatura. Afinal, “A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”, diz Candido. Essa declaração está no ensaio “O direito à literatura”, publicado no livro “Vários escritos” (Duas Cidades, 1995).
 
Algumas perguntas ficaram sem resposta, devido à limitação do tempo, mas vamos aguardar o próximo convite e o fim da pandemia para realizarmos um encontro presencial com esses alunos, um momento em que possamos nos abraçar, nos olhar de perto e trocar muitas ideias sobre esse gênero tão cativante e tão brasileiro que é a crônica. Sigamos confiantes em dias melhores e fazendo o possível para tornar o agora menos angustiante. Afinal, como disse Ferreira Gullar, “A arte existe porque a vida não basta”.
 

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