Andreia Braz

14/12/2020 11h19
 
Retratos do Brasil
 
 
Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. 
 
                                                                  João do Rio
 
 
Depois de dois anos sem ir a João Pessoa, eis que surge uma oportunidade de visitar meu irmão Cícero, jornalista e revisor de textos, que vive na cidade há alguns anos. Devido à pandemia, estou evitando viajar de ônibus, a menos que seja algo de extrema necessidade. Assim como eu, Cicinho também é apaixonado pela história e pela cultura dos lugares e está sempre em busca de novas informações, especialmente as de cunho biográfico. Fico impressionada com seu repertório cultural. Impossível conversar com ele e não aprender um pouco sobre arte, cinema, história... Apaixonado por cinema, música e quadrinhos, deixa a pessoa de queixo caído quando começa a discutir sobre esses temas. Outro dia, por exemplo, ele me deixou encantada com seu vasto conhecimento sobre Jackson do Pandeiro, paraibano que revolucionou a música brasileira. O plano agora é ler a biografia dele: “Jackson do pandeiro: o rei do ritmo”, de Fernando Moura e Antônio Vicente, chancelada pela Editora 34. 
 
Voltemos à viagem a João Pessoa. E eis que uma carona me fez desfrutar de um final de semana com Cicinho, depois de um ano sem nos vermos, no agradável bairro de Água Fria, onde mora. Um bairro central, com todo tipo de comércio à disposição, e muito agradável para andar a pé (do jeito que eu gosto). 
 
Entre revisões e trabalhos da faculdade, dediquei algumas horas do sábado para bater perna no centro histórico. Ele também é revisor de textos e entende minha realidade de profissional liberal. E o resultado não poderia ter sido outro: uma verdadeira aula de história somada ao deleite de apreciar construções antigas e observar os transeuntes que compõem “a alma encantadora das ruas”, para lembrar o título de um livro fascinante e necessário de João do Rio. Afinal, a alma das ruas são as pessoas que as ocupam. Vale destacar uma declaração do autor na crônica intitulada “A rua”: “Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós”. Nessa mesma crônica, o autor classifica as ruas e diz: “Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira...”.
 
E por falar em rua, o percurso de ônibus até o centro histórico foi muito agradável. O passageiro que estava ao meu lado sugeriu um passeio de trem para Cabedelo, o que seria inviável no contexto atual. Quero fazer isso depois da pandemia. Por enquanto, o melhor é evitar sair de casa, a menos que seja necessário e com todos os cuidados possíveis. Não recordo seu nome, mas sua gentileza ficará guardada na memória e lembrarei dele todas as vezes que for a João Pessoa. Costumo tomar nota desse tipo de situação, mas acabei esquecendo de fazer isso enquanto estava no ônibus.
 
Antes de chegar no centro, passamos pelo Parque Solon de Lucena, conhecido popularmente como “lagoa”, um dos cartões postais da cidade, onde várias pessoas aproveitavam o dia de sol sentadas na grama ou mesmo em bancos de madeira. Confesso que senti vontade de sentar na grama e ficar por ali mesmo. Quando passamos pelo parque, lembrei da minha primeira viagem à capital paraibana, quando cursava o ensino médio. Viajei com um grupo de amigas para colher informações que seriam utilizadas em um roteiro turístico na disciplina de Geografia do Turismo, ministrada pelo professor Levi Rodrigues. Desfrutamos de um agradável final de semana e ainda visitamos diversos pontos turísticos da cidade (Praia de Tambaú, Parque Zoobotânico Arruda Câmara). Aquela foi minha primeira viagem de ônibus para outro município. Uma aventura. O grupo era formado por Érika Karla, Jocielly Ribeiro, Islane Souza, Lorena Abdon e Mara Castro. Islane e Lorena não puderam viajar conosco.
 
Na próxima viagem, gostaria de visitar a Academia Paraibana de Letras, o Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba e o Centro Cultural São Francisco. Considerado o maior monumento em estilo barroco da América Latina, o conjunto arquitetônico da Igreja de São Francisco/Convento de Santo Antônio é formado pelo Adro, Igreja, Convento e Cruzeiro. Também pretendo conhecer o Teatro Santa Roza e a Fundação Espaço Cultural José Lins do Rego, dica preciosa do amigo Sandro Alves, crítico de cinema e frequentador assíduo do local, espaço multicultural que abriga o Museu José Lins do Rego, planetário, galeria, cinema, teatro e outros espaços. Antes da pandemia, ele costumava assistir ao menos um filme por semana no Cine Banguê. 
 
Depois de uma longa caminhada, com direito a muita água e picolé, algumas paradas para descansar (caminhar de máscara é um pouco sufocante, mas não podemos abrir mão desse cuidado, em respeito a nós mesmos e aos outros), meu irmão decidiu tomar uma cerveja. Fiquei observando o movimento da rua enquanto ele se refrescava e fumava um cigarro. Algum tempo depois, chega uma senhora pedindo ajuda. Aquela cena já me comoveu de longe. Sem máscara, ela pedia ajuda às pessoas que estavam no churrasquinho que fica na subida do Shopping Terceirão. Ofereci-lhe alguma ajuda e perguntei se estava com fome. Pedi um churrasco e um refrigerante para ela e a convidei para sentar conosco. Perguntei sua idade, se tinha filhos... Não sabia ao certo quantos anos tinha. Sua resposta foi esta: “completei setenta e poucos anos um dia desses”. Dona Joanita tem filhos e netos e está viúva há um ano. Foi tocante quando falou da perda do marido. Gostaria de ter conversado mais com ela, para saber um pouco mais de sua história, mas o barulho ensurdecedor da música executada no local não permitiu um diálogo muito proveitoso. Minha máscara também estava atrapalhando um pouco.
 
Quando chegou a comida, ofereci álcool em gel para que limpasse as mãos antes de se alimentar. Enquanto ela comia, com certa dificuldade, pois lhe faltavam a maioria dos dentes, fiquei pensando na situação dela e na realidade de tantos idosos que vivem em iguais condições Brasil afora. Aquela cena foi de cortar o coração. A minha própria mãe já viveu situação semelhante, mas hoje, livre do vício do álcool há quase dez anos, vive dignamente graças aos cuidados de uma amiga generosa que a acolheu. É tão doloroso saber que milhares de idosos não têm o mínimo para viver com dignidade.
 
Gostaria de ter feito algo mais por dona Joanita. Gostaria de saber onde ela mora e poder oferecer uma ajuda mais concreta. Quando ela foi embora, fiquei com uma sensação estranha, um misto de culpa e vazio. Não sei explicar bem o que senti naquele momento. Além de máscara, álcool em gel e alimentos, gostaria de poder doar algo mais: queria conversar mais com ela, conhecer sua história, saber dos seus desejos, de suas alegrias, de suas lembranças... Também gostaria que ela recebesse uma prótese dentária para poder se alimentar melhor. 
 
Quando ela foi embora, fiquei pensando na situação de milhares de idosos do nosso país que vivem em condições semelhantes. Meu irmão disse que é muito comum ver idosas pedindo nas ruas da cidade, especialmente nos bancos, o que me deixou ainda mais comovida. “Muito pior que o risco de pegar Covid é a fome”, disse um rapaz que estava ao nosso lado, enquanto conversávamos sobre a vulnerabilidade de dona Joanita nesses tempos de pandemia. Essa declaração me fez pensar que não podemos naturalizar esse tipo de coisa e devemos lutar, de alguma forma, para mudar essa realidade e oferecer a esses idosos melhores condições de vida.
 

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