Andreia Braz

26/01/2021 00h44
 
Carta a Nelson Patriota nº 2 
 
Querido amigo, 
 
já se passaram quinze dias desde a sua partida e não tem sido fácil continuar por aqui sem a sua doce presença. Sua amizade era um bálsamo, um alívio para os dias incertos. Sua amizade era o afeto que amenizava a aridez dos dias. Dói muito saber que nunca mais escutarei sua voz, que não terei mais o calor do seu abraço e a delicadeza de suas palavras, que eram sempre de conforto, esperança, motivação. Dói muito saber que nunca mais o encontrarei me esperando para um café, quase sempre com um livro nas mãos. Dói muito saber que não haverá mais convites para o nosso almoço semanal... 
 
Dói muito saber que nunca mais cruzarei contigo na livraria do campus, que não assistiremos mais aqueles concertos maravilhosos às sextas-feiras e depois ficaremos conversando com Carlos Braga, João Paulo... Dói muito saber que você não irá até o balcão pedir um cafezinho pra gente. É impossível ir ao shopping e não lembrar de você, especialmente quando se trata dos lugares que você costumava frequentar. As livrarias e os cafés eram uma parte de você. É como se você tivesse se incorporado a cada um deles e agora não fosse mais possível desassociá-los de sua imagem/presença.  
 
Dói muito saber que você não estará aqui para me aconselhar quando eu estiver enfrentando alguma dificuldade, como fez tantas vezes, não importava qual fosse o problema. Você nunca minimizava as dores e os problemas alheios. Estava sempre disposto a ouvir. Nessas horas você sempre dizia, com muita firmeza: “Reaja, Andreia”. Às vezes, essa sua fala era seguida de uma gargalhada, e tudo ficava mais leve.  
 
Prometo que vou tentar reagir, mas por enquanto vou me deixar levar pela emoção e derramar meu pranto, mesmo que isso não alivie a dor de sua partida. Além dessa dor excruciante, ainda tem uma outra que também maltrata a gente numa hora dessas, o desejo de ter estado mais perto, de ter ajudado de alguma forma. Isso dói tanto! Eu não consegui lhe ver uma única vez enquanto você esteve doente, e isso torna ainda mais dolorosa essa situação. Aliás, nos vimos pouquíssimo ano passado por causa da pandemia, digamos que umas três ou quatro vezes no máximo desde que foi decretado o isolamento social (nosso último almoço foi exatamente no dia 17 de março; não houve o abraço de sempre naquele dia). Foram encontros rápidos para tratar de questões de trabalho. Encontros sem abraços, mas não sem afeto.  
 
Queria tanto poder ter lhe visitado algumas vezes, ter levado algum livro de que você gostasse e lido um ou outro trecho para você. Quem sabe um conto de Borges, uma crônica de Navarro, um poema de Zila... Imaginei isso tantas vezes, meu amigo. Os livros sempre foram seus melhores companheiros. Até cheguei a combinar uma visita com seu filho Ariel, para depois do réveillon. Conversamos algumas vezes sobre o assunto e expressei meu desejo de estar mais perto de você e, quem sabe, lhe visitar uma vez por semana. Antes disso, você foi internado. Uma semana depois você partiu. Vazio. Incerteza. Incompreensão. Queria ter partilhado contigo um café numa tarde qualquer. Talvez um café com uma fatia de bolo ou um pedaço de chocolate meio amargo. Sei o quanto você gostava de tomar um café expresso com um chocolate 70%, especialmente o de laranja. Tantas vezes fizemos isso na Kopenhagen. Sei também que gostava muito de bolo da moça e de bolo de laranja. 
 
Queria tanto poder ter demonstrado que eu estava ali, que você poderia contar com meu afeto, mesmo que a gente não pudesse se abraçar, mesmo que não pudéssemos ver o sorriso um do outro. Nossos olhares estariam ali para dizer da alegria da partilha, do afeto, da amizade. Aliás, você sempre dizia que gostava da minha alegria e do meu entusiasmo, e era isso que eu gostaria de ter partilhado contigo nos seus últimos dias, um pouco de afeto, um pouco de alegria... Além de tudo que você enfrentou, ainda teve o contexto da pandemia, que nos privou de abraçar e manter contato físico com as pessoas que amamos, especialmente as do grupo de risco, como era o seu caso. 
 
Nem posso imaginar a solidão que você enfrentou nos últimos meses de vida, a falta que sentiu dos seus amigos, da sua rotina de trabalho, de sua produção literária, das suas idas a restaurantes, cafés, livrarias, sebos, dos almoços com seu primo Roberto, das suas viagens a Alemanha, Praga, Recife, João Pessoa, São Paulo... Você sempre me falava com empolgação dessas viagens. Era um deleite pra você ir a Recife de ônibus e aproveitar os eventos culturais na cidade. Sempre me aconselhava a fazer o mesmo e ficava superfeliz quando eu viajava. Adorava partilhar minhas impressões de viagem contigo, quase sempre por e-mail. Você também fazia o mesmo. Hoje estava revendo alguns e-mails antigos e um deles falava da minha primeira viagem a São Paulo, em 2017. Eu estava tão feliz por realizar o sonho de conhecer a pauliceia e reencontrar meus familiares que vivem na cidade. Alguns primos eu não via há mais de trinta anos, outros eu nem conhecia.  
 
É tão difícil lembrar de tudo isso e saber que você não está mais aqui, que não tenho mais aquele amigo com quem eu gostava de conversar sobre qualquer assunto, por mais banal que fosse. Até as aventuras e os dilemas amorosos de algumas amigas eram pauta de nossas conversas, marcadas quase sempre por muitas gargalhadas. Havia também os momentos de silêncio, onde prevalecia o afeto e a certeza da inteireza do outro, da amizade sincera. Bastava a alegria de estarmos juntos, como diz Rubem Alves. 
 
Sei o quanto você amava a vida e que a viveu intensamente, o que de certa forma me traz algum conforto. Você dedicou a maior parte de sua existência à escrita/literatura e foi reconhecido como crítico literário, editor, tradutor, e isso é tão inspirador. Além do mais, você sempre foi generoso com os escritores que estavam começando e precisavam mostrar seu trabalho. Sou prova viva disso. Jamais vou esquecer suas preciosas orientações. Ana Cláudia Trigueiro, Fátima Medeiros e Rafael Marques foram alguns desses autores que tiveram o privilégio de ter um livro prefaciado por você.  
 
Você deixou um grande legado e nos ensinou a amar os nossos escritores, sem, no entanto, deixar de apreciar outras literaturas. Você nos ensinou a criticar com elegância e, acima de tudo, com argumentos incontestáveis porque sempre muito bem fundamentados. Obrigada por tudo.  
 
Sua amiga de sempre. 
 
Andreia Braz 

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