Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

06/09/2024 05h34

Quando estiver tendo um dia ruim...

 

A solidão e a tristeza sempre tingem de melancolia poemas e músicas. Afinal, são dois sentimentos que experimentamos na vida com os quais precisamos aprender a lidar, pois são tão certos e inevitáveis como o ar que respiramos.

Uns lidam empurrando para debaixo do tapete; outros buscam o humor para dissipar as sensações angustiantes no corpo; outros se recolhem, precisando de uns minutos sozinho; outros realizam processos alquímicos para reelaborar a convivência com tais sentimentos, transformando o infortúnio em algo criativo. E como isso não é uma receita de bolo, independente da forma de lidar, o importante é buscar uma escuta especializada de um(a) terapeuta que estudou para acolher sem julgamentos e orientar a trilhar um caminho em busca de qualidade de vida.

O irônico da situação é que, quando estamos diante da dor do outro, somos capazes de vislumbrar uma saída, aconselhamos, sugerimos... porque aquela dor não está emaranhada em nossas entranhas. O distanciamento nos dá essa visão privilegiada. Por isso mesmo, temos que andar com muita cautela sobre a grama do vizinho que nem sempre é tão verde. Mas... e quando a dor é nossa, o que fazer com ela?

Uma das canções que costura letra e melodia com as tintas da melancolia é Lonely Day, da banda System Of a Down. Ela consegue ser cirúrgica sobre uma tristeza tão exata, descrevendo como ela acontece dentro de nós em um momento de dor emocional. É sobre esse instante que esse texto colocará uma lente de aumento. Nem sobre o antes, nem sobre o depois, mas a respeito daquele momento em que algumas pessoas flertam com a morte que se apresenta de forma sedutora como fuga e libertação para todo o mal que nos assola.

Daron Malakian, vocal e guitarra do System Of a Down, escreveu essa composição que rendeu à banda uma indicação na categoria “melhor performance de hard rock” no 49o Grammy Awards, em 2007, e bem que poderia ser um hino do Setembro Amarelo.

A letra fala de uma solidão que se intensifica, levando o Eu Poético a se referir a um dia específico, descrito como o mais triste de sua vida, chegando a desabafar com eufemismos sua vontade de pôr fim à dor. A música é curta - metáfora perfeita para vida que é breve também - e possui um refrão repetitivo. Acontece que o recurso da repetição funciona como uma martelada na mente de quem já está sentindo uma dor que se agiganta, beirando ao insuportável. A melodia, que começa com um riff hipnótico e calmo, vai se intensificando até entrarem os metais em batidas mais pesadas. O solo de guitarra se assemelha às reticências em um texto: deixam em aberto para que ouvintes preencham de sentido a solidão louvada. Depois, volta à calmaria para acompanhar a frase final que arremata: “É um dia o qual estou feliz por ter sobrevivido.”

No clipe, pode-se ver pessoas caminhando em um centro urbano, porém elas não se olham, não se saúdam. Estão próximas e tão distantes ao mesmo tempo, imersas em seu próprio mundo. Foi a maneira cinematográfica de mostrar o quanto mergulhamos nas águas profundas das nossas dores. Estar longe de qualquer ajuda, nessas horas, representa um perigo. Afinal, quem nos socorre? Quem nos tira de dentro da dor quando a experimentamos? Quem coloca freios na impulsividade que algumas pessoas têm para atentar contra si? Todas essas perguntas podem ser levantadas diante do que essa obra de arte mostra: uma batalha interna, poética e exata, no momento em que flertamos com a morte, enquanto aparente saída para o sofrimento humano.

De um lado, a música fala sobre o veneno do instante; de outro, entrega o antídoto da companhia. Nos versos que dizem: “E se você for / Quero ir com você”. A saída está no fato de sermos seres relacionais. Na pandemia, constatamos isso. O isolamento nos adoeceu mentalmente. Não fosse a arte, a fé, a força da amizade, teríamos sucumbido. Não nascemos para ficar sozinhos. E nem falo exatamente de uma única forma de companhia. Existem várias formas que colaboram para a nossa saúde mental: a presença de um filho, de amigos, de um pet, de um(a) companheiro(a), de algo que tenha vida e interaja conosco.

Lembro muito do que uma amiga escritora falou certa vez, quando experimentou um período de solidão: “Eu quero ter alguém dentro de casa nem que seja para brigar.” Na hora, eu ri muito. Depois, fiquei pensando no quanto necessitamos da figura do outro, esse diferente de nós que se importa, se mete em nossa vida, nos lembra de cortar as unhas, enfim, demonstra estar ali na caminhada ao nosso lado. E amor é isso: o compromisso, o respeito e o afeto que outra pessoa tem para conosco.

Esperar uma demonstração específica de amor da parte da pessoa que divide o teto conosco é como se escrevêssemos um roteiro desconhecido para ela. Amor é algo construído com diálogo e aparece nas iniciativas diárias: uma comidinha que alguém fez para você, uma mensagem para saber se você chegou bem em casa, um abraço, ou mesmo uma pessoa sentada ao seu lado sem nada falar, disponibilizando um pouco do seu tempo para dividir com você.

Sobre o diálogo, é importante materializarmos, darmos vidas aos monstros mentais que surgem para nos apavorar, quer falando, quer escrevendo. Toda dor, um dia, passa. A parte desconfortável é que ela parece infinita, quando a experimentamos. Não podemos coroá-la e colocá-la num pedestal. E nem quero, com isso, passar uma receita. Apenas, trazer luz, possibilidades, pois cada pessoa tem sua própria história.

A dor é como impressão digital: cada um carrega a sua. Aprendi que não devemos comparar, ou mesmo medir com a nossa régua o que o outro está sentindo. Falar é um caminho de cura. Ouvir (sem julgar) é a maior demonstração de acolhimento. Viver é um teste de resiliência. Em meio a isso tudo, nossa mente é o labirinto do Minotauro, quando adoecida. Não devemos nos permitir ficar presos nesse lugar. Se ficarmos, o bicho come. E, para sairmos, precisamos achar forças para encarar os corredores tão semelhantes, feitos sob as hábeis mãos da dor para nos tornar cativos.

Tudo isso partilhado na coluna de hoje é para lembrar que setembro é o mês dedicado à campanha de prevenção e combate ao suicídio, pois a sociedade anda deveras adoecida. Não trarei dados estatísticos, pois o objetivo não é causar um efeito Wherter. É para lembrar que este também é o mês que nos traz a primavera para nos lembrar que dias tristes e solitários são uma fase. Quando estiver tendo um dia ruim, dê um drible no lonely day e ligue para o número do Centro de Valorização da Vida.

 

CVV 188

 

Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.


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