Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

04/10/2024 12h54
A dádiva de se ter amigos
 
A natureza tem sempre formas de nos trazer lições. Hoje, decidi partilhar com vocês, leitores e leitoras, uma delas. Essa história não é apenas sobre baleias, golfinhos e tubarões no vasto mar.
 
Circula nas redes um vídeo de uma baleia que, recolhida em águas tranquilas, encontra-se em um recôncavo na costa de mar, uma enseada, para dar a luz ao seu filhote. Acontece que o predador dos mares, o tubarão, é um bicho da cadeia alimentar equipado com um superolfato capaz de fazê-lo sentir uma gota de sangue em 2 milhões de litros d´água, há 300 metros de distância dele. No vídeo, o momento mais terno e também de fragilidade da baleia está prestes a ser ameaçado por um cardume de tubarões.
 
De repente, um grupo expressivo de golfinhos aparece e começa a nadar em círculo, protegendo a baleia e o seu filho que permanecem ao centro. As águas agitadas acabam afugentando os predadores.
 
Para quem não sabe, as baleias – esses gigantes marinhos – possuem uma forma de comunicação com os golfinhos, uma vocalização específica. Cognitivamente elevados, os golfinhos, por sua vez, são capazes de emitir sons específicos para chamar individualmente seus pares, como se fosse o nome de cada um.
 
Com isso, quero falar sobre a beleza, a providência e a dádiva de se ter amigos no mundo. Mais ainda: destacar algo sobre os elãs que somos capazes de criar, quando recebemos o apoio dos amigos. Ou mesmo, da força coletiva quando damos as mãos.
 
Quando vejo o sistema patriarcal alimentar rivalidade entre mulheres (o que já é triste!), por exemplo, observo o quanto deixamos de avançar na luta coletiva, o quanto adiamos a conquista de direitos civis. O ódio, o medo e a competição são ferramentas preparadas para matar nossa verve criativa, pois deles nos deixam reféns. A quem interessa isso dentro de um projeto político de poder? Além do sistema patriarcal, há pessoas que se encarregam de desmobilizar a nossa luta. Mais triste ainda é quando isso vem de outra mulher...
 
A vida já é, por si só, um enfrentamento a cardumes de tubarões. O que seria de nós, humanos, sem a presença de amigos a nossa volta, quando estamos na mira dos predadores de nossos sonhos, de nossa luta, de nossa vida? 
 
Afinal (e já puxando para a minha sardinha), no meu caso que sou escritora (esse ofício árduo no mercado editorial, quando se é mulher), para segurarmos uma caneta e escrevermos a nossa história no mundo ou falarmos sobre ele, de forma ficcional ou não, requer uma mobilização de toda uma rede. Então, é desolador quando vemos outra mulher se levantar dentro de um mesmo movimento para minar a luta que é maior e anterior a nós mesmas. É o chamado “fogo amigo” que Umberto Eco mencionou na obra “Construir o inimigo”.
 
No ensaio, o filósofo tece considerações sobre sistemas totalitaristas, fundamentando qual o sentido de se ter um inimigo. Assim, ele diz que “Ter um inimigo é importante não somente para definir a nossa identidade, mas também para encontrar o obstáculo em relação ao qual medir nosso sistema de valores e mostrar, no confronto, o nosso próprio valor. Portanto, quando o inimigo não existe, é preciso construí-lo.” Devo acrescentar que essa lógica é a cara do patriarcado.
 
Nesse processo de construção, o escritor italiano menciona como surge o ódio aos judeus. Começa com o estranhamento ao outro, esse que é diferente de nós pela prática religiosa que desenvolve, pelos alimentos que ingere, pelo fenótipo, até chegar à literatura veiculada sobre ele com respaldo científico, inclusive, para dar ares de legitimidade ao ódio e à perseguição. O sistema jurídico se encarrega de reforçar o cerceamento – exemplo disso está na Sereníssima Veneza, criadora dos ghettos judeus, relegando-os a viver por 300 anos nesses espaços, impedidos de serem proprietários de terra. Há de perceber que a violência começa rastejando, sorrateira.
 
Fórmula semelhante é usada para desmobilizar o movimento de mulheres. Basta que uma esteja fora dos moldes estabelecidos pelo patriarcado. Faça um exercício e relembre quantas já foram queimadas em fogueira ou internadas em manicômio por se negarem a ser adestradas, por não se encaixarem num modelo feminino, por serem diferente, por serem elas mesmas. Então, agora, em pleno século XXI, momento histórico no qual nos unimos para avançar em pautas que dizem respeito aos nossos destinos, nos deparamos com o patriarcado de tocaia e uma nova forma de inimigo: a mulher que luta ao nosso lado.
 
Volto à Umberto Eco para explicar melhor esse processo. Na continuação de suas ponderações em “Construir o inimigo”, ele mostra o “fogo amigo” como um dos exemplos dessa construção. Paradoxal? Então, proponho um exercício político (não partidário) dentro dos grupos dos quais vocês, leitor e leitora, fazem parte: na sua família, na sua igreja, no seu local de trabalho. Nesse exercício, você perceberá quem são os golfinhos e quem são os tubarões.
 
Vamos começar com os predadores. Já teve a impressão de que uma pessoa com quem você convive pacificamente age desencorajando seus projetos, mudando datas que você estabeleceu dentro de um plano de metas e só comunicando de última hora (quando comunica), ou atropelando a sua agenda sem dialogar com você; criando programações concomitantes para desmobilizar algo que você se empenhou por semanas ou meses; invadindo um espaço que foi destinado a você para exercer o protagonismo dela/dele, pegando carona no seu momento; encorajando pessoas a não apoiarem uma ideia sua e depois aparecer com a sua ideia estampada na cara, orgulhando-se como se fosse autor/a daquilo que por você foi proposto?
 
Quando estamos dentro de um mesmo movimento e isso acontece, estamos diante do “fogo amigo”. São semelhantes aos tubarões que ficam sempre à espreita de um momento de fragilidade ou distração. Ao lado dessas pessoas, você fica em estado de alerta. Se você já passou por isso, então você compreendeu – na prática – a linha de raciocínio do Umberto Eco.
Golfinhos são aqueles que veem você em seu momento de candura e ficam felizes ao seu lado, ainda protegendo dos predadores. Você não precisa ficar em estado de alerta e sente uma calorosa energia de celebração, brotadas do altruísmo.
 
Torço para que você, leitor ou leitora, tenha uma rede de golfinhos, pois no mar da vida, há tubarões aos montes com suas milícias, sempre à espreita para abocanhar nossos momentos de luz, de amor e de fragilidade. Ter por perto golfinhos é uma forma de nadarmos na imensidão do mar em segurança. Splash!
 
Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.
 

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