Kalina Paiva

Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

20/12/2024 07h51
A menina que carregava livros
 
Passara a noite em claro, ensaiando aquela que seria a sua última manhã. Estava um misto de ansiedade pelo que não foi feito e cansaço acumulado do ano todo – o que alguns conhecem como síndrome de dezembro. Seu codinome era “Flor-de-Jasmin".
 
Despontados os primeiros raios de sol daquela terça-feira (17), fez um checklist e viu que nada faltava na mochila: uma luva, um coldre velado, duas mixtus pontiagudas, 10 munições e uma 38 de cano curto oxidado que se encaixava delicadamente em suas mãos de dedos longilíneos.
 
Caminhou com o seu pior lado, sentindo um suor frio a percorrer-lhe o corpo, embora o sol queimasse na moleira. Nem era verão ainda. A cada passada, a jovem de fala doce, corpo esguio e olhar amendoado embebia a alma com fúria e coragem.
 
Aos que já estavam em sala, parecia um dia normal de aula. Mas, para ela, era um acontecimento ao qual reservara nove disparos em CPFs específicos a serem cancelados. O dela seria o décimo, não antes sem desenhar a morte com as afiadas mixtus.
 
Quisera estar aqui escrevendo uma storytelling para a coluna. Contudo o desfecho dessa narrativa foi real: um disparo estabanado, uma vítima atingida de raspão na cabeça e a imobilização da menina de 19 anos pelos colegas seguida de detenção pela Polícia. Na mochila, o seu pequeno arsenal dividia espaço com os livros e uma carta que embaralhava despedida e pedido de desculpas à família. 
 
As obras do seu acervo particular encontrado na mochila contam de forma simbólica uma narrativa daquele momento na vida dessa jovem: Persuasão, de Jane Austen; BTK Profile: Máscara da Maldade, de Hurst Laviana, L. Kelly e Roy Wenzl; Ted Bundy: um estranho ao meu lado, de Ann Rule; O sorriso da hiena, de Gustavo Ávila; Garota Exemplar, de Gillian Flynn; Zodíaco, de Robert Graysmith; Suicidas, de Raphael Montes; Columbine, de David Cullen. Na mídia, alguns influenciadores sensacionalistas culparam os livros.
Parte dessa história, entremeada com leves toques de ficção, é real. A jovem com arminha na mão estava numa escola de Natal/RN. Por trás do disparo e da carta de despedida, há muitos juízes de plantão, apontando a ponta do iceberg, enquanto o Titanic afunda com todos nós, a sociedade – incluindo esses julgadores que nada fazem para reverter esse quadro de violência extrema nas escolas.
 
Afinal, o que está por trás dessa atividade violenta? A forma desastrada com que a jovem usou a arma deixa evidente que não se trata de uma criminosa contumaz. Alguém acaso se perguntou a respeito do barril de pólvora sobre o qual estamos sentados? Até agora, o que vemos é uma exposição excessiva de uma adolescente – segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), essa fase da vida se estende até os 19 anos, 11 meses e 29 dias, embora alguns estudos apontem para os 24 anos. Mesmo que alguns discordem, sim, estamos tratando de uma adolescente.
 
Enquanto a punição oficial é reivindicada, a extraoficial – o tribunal de rua das redes sociais – já está em curso julgando a seu modo sem que dialoguemos a quantas anda o contexto sobre o qual está assentada a educação brasileira.
 
Mesmo sem sabermos a motivação ou o estado de saúde mental da jovem, o conteúdo das obras listadas acima colabora para entendermos mais sobre o ataque de violência extrema, enquanto fenômeno contemporâneo, reflexo da expressão mais trágica dos adolescentes cooptados pela misoginia, pelo racismo, pela lgbtfobia que desempenham um papel crucial nesse processo. Pelo menos, é o que aponta o relatório Ataques às Escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental, publicado em 2023, que lista, entre as motivações, a reação a ressentimentos emocionais, os fracassos e as violências experienciadas na vida e na comunidade escolar, a exemplo, o (cyber)bullying incluso no pacote. Tal fenômeno é multicausal e se amplifica em contexto cujos valores são reacionários.
 
Esse mesmo relatório aponta a falta de controle a discursos de ódio nas redes (Lembrem que deputados votaram contra a regulação nas redes), a cultura armamentista com a glorificação da violência (Relembrem as frases ditas por deputados no impeachment da única mulher que esteve na presidência do Brasil), a ausência de uma educação crítica, cidadã e humana (Recordem que Filosofia, Sociologia e História foram desobrigadas no currículo do ensino médio) como contributos para a efervescência de comportamentos extremistas violentos.
Antes de a sociedade pensar em culpar os livros, necessita refazer um caminho civilizatório. Preciso lembrar que o RN é um dos estados que menos lê? Em pesquisa recente, ocupamos uma posição lastimável no ranking, a penúltima.
 
Arrisco-me a dizer: talvez, essa jovem sequer tenha lido essas obras que carregava na mochila. E se leu, não parece ter compreendido as “armas” dos autores que atiram narrativas com um alvo específico: a humanização pelas vias da verossimilhança. Deixou de reconhecer um retrato da elite do atraso brasileira na crítica de Jane Austen à sociedade inglesa – os países até são diferentes, mas nossos problemas estruturais dialogam bastante; não fruiu sobre a triste realidade dos padrões impostos às mulheres discutidos por Gillian Flynn em Garota Exemplar. 
 
Quanto aos demais livros que narram sobre crimes, investigação e perfil criminal de assassinos em série, sua função não é formar assassinos em série. Querer culpar os livros por um comportamento destoante é o mesmo que querer culpar a janela por causa da paisagem. O horror que suja de sangue a narrativa é um elemento simbólico, um vestígio da violência que nos acompanha desde os primórdios da humanidade.
 
 Que a sociedade brasileira está adoecida, disso ninguém parece ter dúvidas. E quando acontece algo dessa natureza, boa parte dessa mesma sociedade não busca remédio para as causas das mazelas sociais, mas defende com unhas e dentes a punição mais truculenta possível com formato de espetáculo, seja ele televisionado ou um reels que se multiplique feito vírus para alívio dos seus frenesis. Combater a violência com uma forma de perpetuá-la é paradoxal e cínico.
 
Eis aí um dos motivos pelo qual continuarei defendo a literatura e a educação: porque nos fazem enxergar a essência das coisas com a profundidade que a situação exige. Armar-se de livros nos livra de armas. Certamente, os que apedrejam os livros o fazem por uma razão específica: narrativas mostram a sociedade sem filtro no espelho e isso incomoda na era da super exposição.
 
Para finalizar, reitero a leitura (necessária) do relatório Ataques às Escolas no Brasil: análise do fenômeno e recomendações para a ação governamental, pois os autores mostram a problemática nas instituições de ensino ao mesmo tempo que sugerem 12 passos com possíveis soluções para mitigá-la.
 
 
Kalina Paiva
Natural de Natal/RN, é professora e pesquisadora do IFRN, autora de poesia e contos de terror.

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