Théo Alves

04/04/2021 00h14
 
Pequeno catálogo de personagens e afetos
 
A realidade tem fibras demais para que a mastiguemos sem grandes tensões, sem que sofra o maxilar, o que faz dessa mastigação uma prova de resistência mais do que de arranques. Por isso a ficção nos cai bem: desde os livros que lemos às séries e filmes que vemos ou mesmo as histórias que ouvimos de nossos amigos ou familiares, que costumam trazer sempre tramas fantasiosas a partir de uns poucos fatos.
 
Como leitor, posso dizer que alguns personagens me ajudaram a destrinçar a fibra densa dos dias desde minhas primeiras leituras. Ainda menino, me inquietava o pragmatismo de Phileas Fogg, de “A Volta ao Mundo em Oitenta Dias”, do escritor francês Júlio Verne. Mais do que a inventividade necessária para cumprir sua viagem em torno do mundo, me interessava sua obsessão por contar os passos de um caminho, a temperatura precisa da água para se barbear e essas pequenas cismas com a matéria miúda dos dias. O meticuloso Sr. Fogg era espetacular.
 
Lembro-me de começar a contar os passos de casa até a escola ou a biblioteca pública que frequentava; de fixar precisamente os horários com que fazia todas as atividades, como sair de casa exatamente às 7h43 para chegar no momento exato em que o sino da escola chamava para a entrada. Isso tudo era para mim muito mais importante que viajar ao redor do mundo, pois, ainda sem ter plena ciência disso, algo me dizia que viver era a textura insípida de todas as segundas-feiras, enquanto dar a volta ao mundo era eventual e, sozinha, essa aventura já carregava todo o sentido de que carecia.
 
Já adolescente, foi por Gregor Samsa que fui tomado. O personagem de “A Metamorfose”, do tcheco Franz Kafka, me intrigava profundamente desde a primeira página. O horror inesperado de um homem comum que acorda metamorfoseado em um besouro me parecia algo possível, como se eu ou qualquer um dos meus vizinhos pudesse acordar assim subitamente. Coisas estranhas aconteciam no Barreiro das Almas, onde eu morava.
 
O verdadeiro terror de Samsa estava guardado em uma cena absolutamente simbólica para mim: ao perceber-se besouro, de carapaça monstruosa e ventre quase cremoso, Gregor se sente acuado diante do despertador que já aponta as seis e meia da manhã, quando deveria ter levantado às cinco. Mesmo estando preso a um trabalho que detesta, o caixeiro viajante está verdadeiramente preocupado com a desculpa para o atraso que dará a seu superior, como se sua nova forma não fosse uma justificativa suficiente para o trabalho que o desumanizava.
 
Poucas cenas na literatura universal são tão capazes de descrever o horror de nossa sociedade de forma tão sucinta e natural. Um homem tão escravizado pelo trabalho que perde, em perspectiva, sua condição de homem. Mais que a aparência, mais que a incapacidade de comunicação, que a impossibilidade de explicação do fenômeno da metamorfose, era a obrigação do cumprimento das metas de mercado que o assombravam. É como dizer a um operário de uma fábrica que o mundo acabará às 16h45 e ter como resposta “então precisamos acelerar a produção para cumprirmos a meta de hoje”.
 
Dom Quixote também me apareceu à mesma época. Diferentemente de Samsa, com quem vim a me identificar de fato apenas alguns mais tarde, com o Quixote a identificação foi imediata. A loucura de Alonso Quijano era também a minha: necessária para conseguir compreender a vida miúda, de desafios tão pequenos e inodoros, como possível apenas dentro de um universo mágico. A fragilidade, a comédia pastelão, as sandices de Dom Quixote eram também as minhas, que transformava as manhãs na escola em grandes duelos pela sobrevivência jamais ameaçada de fato.
 
Assim como a Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura, me consome o medo de recobrar a consciência da realidade em algum momento que me ponha a sentir vergonha de todas as empreitadas em que me lancei. Se há uma coisa de que nenhum homem necessita realmente é de lucidez excessiva. 
 
A lista de personagens que compõem o meu pequeno universo imaginário continua. Poderiam figurar aqui Raskólnikov, de “Crime e Castigo”, ou Muirchertach, que escreve a Magnus Barfod às vésperas de uma batalha, apresentado por Jorge Luis Borges em “O Inimigo Generoso”; a pequena Hala, gêmea separada de sua irmã pela morte, de “A Desumanização”, de Valter Hugo Mãe; alguns dos personagens de André Gide; o heterônimo Alberto Caeiro, de Fernando Pessoa; alguns dos muitos Buendía, dos “Cem Anos de Solidão”; Giovanni Drogo, de “O Deserto das Tártaros” ou Arturo Bandini, dos livros de John Fante. E muitos, muitos outros ainda.
 
O que compreendo, à esta altura da vida, em que também tenho dado personagens e histórias ao mundo, é que não teria sobrevivido sem essas criaturas que tornaram a loucura de meu pequeno universo, estendido entre a Rua do Brejo e o Barreiro das Almas de uma Currais Novos inventada no tempo, uma vida possível e menos solitária. “Palatável” talvez seja a palavra elegante para isso.
 

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