Eliade Pimentel

Jornalista

31/07/2024 16h05

Roteiro de tradições de uma cidade desmemoriada

 

A capital potiguar é apelidada maldosamente de “Natal, a cidade do já teve”, por conta da falta de cultura de modo geral quando o tema é preservação da memória, tanto com relação a elementos materiais, quanto imateriais. Todavia, a cidade reserva umas surpresas nesse aspecto, de modo que aqui e acolá nos deparamos com serviços e estabelecimentos que têm se mantido ao longo de décadas. Este é um tema que eu amo e, mais recentemente, comecei a pensar novamente sobre isso ao me deparar com uma fachada simples na avenida Afonso Pena, no bairro do Tirol, de um pequeno salão de beleza. 

Quando eu era adolescente, Lu estava neste mesmo endereço, entre as ruas Açu e Jundiaí, e era a manicure de minha amiga Karina Maia. Na época que eu morei no bairro, há pouco mais de uma década, encontrei minha amiga neste mesmo local, e acabei virando cliente. Pois, anos depois, quando fazia mais de mês que eu estava de volta à área, visto que estou trabalhando nas imediações, pude perceber que, entre as novidades que se estabeleceram no local, o salão continua no mesmíssimo endereço. 

Fiquei tão surpresa que um dia passei apressadamente, porque estava atrasada para um compromisso, mas voltei e falei pela grade, dei aquele alô saudoso, prometendo voltar qualquer hora para colocar a conversa (e as unhas) em dia. Outro lugar que resiste ao tempo (desde os anos 70!) e ao espaço dessa cidade sem memória é o Tahi Lanches, na praça Aristófanes Fernandes, chamada de Praça das Flores, que também abriga outros estabelecimentos longevos, como o Six Bar. Churrasquinho situado entre bistrôs chiques, este ganhou o nome como paródia ao Seven, que fica ao lado, porém, sua trajetória antecede à existência do clube noturno. 

Nesse roteiro de tradições, claro que eu vou puxar a sardinha para o meu lado, ou melhor, não exatamente o meu, mas do meu namorado Douglas. Como não falar da Copiart, a copiadora que trabalha exclusivamente com papel, que não migrou para a extensa variedade de gráfica rápida, e funciona há mais de 30 anos no mesmíssimo endereço? Edifício Elali, em Lagoa Nova, esquina das avenidas Nascimento de Castro e Salgado Filho. Encadernações, plotagens, cópias e digitalizações em geral. Empresa familiar, tocada por pai e filhos. É tão conhecida que muitas vezes eu indico, mas o pessoal já é cliente. 

Optei por construir um roteiro aleatório, com base na minha memória afetiva. Na Cidade Alta, tem a Cigarreira do Júlio, no Grande Ponto, situada na rua Princesa Isabel, nos fundos da antiga Marisa e, contemporânea ainda da Lobrás – Lojas Brasileiras. Quem lembra da concorrente das Lojas Americanas?  Colega de infância da avenida 3, no bairro do Alecrim, Raquel, a filha do proprietário, puxa sempre uma prosa comigo quando passo por lá. Sinto como se o tempo não passasse e fosse sempre generoso, por manter em meu caminho essas pessoas tão especiais. 

Ali próximo tem O Rei do Mate. Sou uma cliente muito esporádica mesmo, mas fico feliz por saber que algumas pessoas, como a minha irmã mais nova, Elilde, e minha filha Alice, sentem-se tão familiarizadas que se valem da lanchonete como ponto de encontro ideal, aquele que é fácil de achar até para quem não frequenta o centro da cidade. 

Ah, e o Sarrafo, um caldo de cana existente na rua Açu, no Tirol, cuja história contada pela jornalista Mirella Lopes, no portal Saiba Mais, é simplesmente surpreendente. Vale à pena ir lá para conversar com o herdeiro do estabelecimento e saber por ele mesmo os detalhes. Um dia eu fui com Titina Medeiros, a atriz acariense, e ela também não sabia como essa empresa é tão antiga.

Eu gosto de estabelecimentos longevos, cuja história reforça a importância da valorização de um bom serviço prestado e é pautada pela hospitalidade. Afinal, como se manter tantos anos no mercado, se não for por uma boa causa? É o caso da empresa Nilson Buffet, de minhas sobrinhas Raíra e Lara. Claro que elas honram o nome de seu pai, Nilson, e da sua mãe, Eliete, meu cunhado e minha irmã, respectivamente, que nos deixaram durante a pandemia da Covid, em 2021. A empresa é sinônimo de excelência, nível mantido por elas e Plínio, marido da sobrinha mais velha. Já chorei de emoção, ao vê-lo no salão como o sogro fazia, conferindo os detalhes da festa. 

Mesmo com a destruição recorrente de sua memória, felizmente Natal tem um roteiro afetivo de estabelecimento peculiares, como é o caso dos “sebos”, que são lojas de livros e discos usados. Catalivros, por exemplo, muda de endereço, mas a família proprietária é a mesma e atualmente mantém três lojas, tocadas cada qual por pai, mãe e filho. Balalaika, na Cidade Alta, do amigo Severino Ramos, situado no prédio onde o clube América foi fundado, em 1915, existe e resiste no mesmo endereço há exatamente três décadas, na rua Vigário Bartolomeu. E, mais recentemente, o Seburubu, na avenida Deodoro da Fonseca, faz seu nome junto à galera mais jovem. 

Vou ficando por aqui, mas fica a dica. Aproveite o tema e faça também um roteiro. É um delicioso exercício para manter a sanidade mental. Amo tanto esses lugares que tudo o que desejo é vida longa ao roteiro de tradições, da nossa querida Cidade do Sol! 

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Eliade Pimentel é jornalista, graduada pela UFRN, com larga experiência em jornalismo cultural, assessoria de imprensa, comunicação estratégica e comunicação em rede. Atua como Assessora de Comunicação na Fundação José Augusto (Governo do RN). Mãe de Alice, amante de Baía Formosa e Pium, ativista social, cultural e ambiental, autora de contos eróticos e cronista deste portal.  

 

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