Daniel Costa

19/12/2018 01h46
 
O Beco da MPB
                                                                                  
Quem não conhece o Beco, geralmente chega por lá sem muita pretensão, querendo apenas se arranchar num bar como outro qualquer, do tipo que cheira a churrasco, cerveja e toca um brega rasgado. Mas é só atravessar o comprido corredor, entremeado por mesas e cadeiras plásticas, que dá acesso a sua parte coberta, e a coisa começa a mudar de figura. 
 
As suas paredes internas são envolvidas por desenhos da turma de ouro da música popular brasileira: Cartola, Tom Jobim, Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso... Tá todo mundo lá, marcando presença, ouvindo atentamente Carlos Ponta Negra, o anfitrião, dono da birosca, comandando o som e recebendo os fiéis frequentadores com uma breve saudação: “Entrando no Beco Nigelson, o maior conhecedor de MPB da região!”; “Boa noite ao amigo Felipe Boçal, que hoje vai avivar o microfone cantando “A dois passos do paraíso!”; “Desfilando no tapete vermelho, Nira e Rafaela Diniz!”.  
 
A turma abre um sorriso devolvendo o agrado. Senta sem demora. Carlos Ponta Negra certamente já está trabalhando e ninguém quer deixar de vê-lo tirar das cordas do seu violão o som de uma banda inteira. Os “standards” da música popular brasileira explodem pelos quatro cantos do bar, se misturando a tantas outras belas canções (quase sempre desconhecidas para os ouvidos medianos). Coisa pra francês ver. 
 
Mas é bom que se diga que ele não trabalha sozinho. O pessoal vai enxugando copos de cerveja e fazendo coral. É simplesmente impossível deixar de acompanhá-lo quando o seu vibrato ataca o segundo refrão de “Andança”, de Dorival Caymmi, ou quando ele assovia, passarinheiro, “Onde anda você”, de Vinícius de Morais. Nessa altura, alguém já se dispôs a fazer uma canja. Os intérpretes de Nana Caymmi, Nelson Gonçalves e Guinga vão ressonando pelo acanhado palco do bar. A história da MPB é passada a limpo, contada em detalhes por alguns entusiasmados frequentadores. 
 
A noite vai descendo a ladeira e com ela a vizinhança-trabalhadora clama por silêncio. É hora de encostar o violão e abrir as portas para os poetas e trovadores declamarem alguns versos baldios, que flutuam meio perdidos entre o barulho das conversas e o cochilar dos bêbados: “Você tem quase tudo dela, o mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela, só não tem o meu amor. Mas, nestes dias de carnaval, para mim, você vai ser ela. O mesmo perfume, a mesma cor, a mesma rosa amarela (...)”. 
 
Quando o último dos ébrios acorda, pensando em salivar no microfone, os portões já estão se fechando. Abraços e beijos. Só permanecem os chegados. Carlos Ponta Negra, o alienígena, de quem todo mundo gosta, mas que quase ninguém ouviu tocar, vai falar das suas peripécias pelo Rio de Janeiro, dos contatos travados com Renato Braz, Belchior e Paulinho da Viola. Vai contar sobre as suas composições e, ao fim e ao cabo, deixar bem claro que quem não conhece o Beco, e chega por lá sem pretensão, não se arrancha num bar como outro qualquer.

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