Daniel Costa

03/04/2020 13h42
 
Melhor hora para voltar
 
Chove a cântaros. Daqui de dentro leio um poema de Ana Cristina Cesar, ouço B.B King, Pat Metheny e Dave Brubeck. As coisas não estão tão mal assim, ao menos até que Clarice resolva se divertir vendo na minha barriga uma área de pouso em que ela possa aterrissar. Estico a coluna conforme recomendações fisioterápicas. Longe dos familiares, penso estar em uma viagem sem data pra voltar. O teletrabalho ajuda a manter a rotina. Nos dias de sorte, DJ Magão toca punk rock pelas redes virtuais e Hamilton de Holanda dedilha o seu bandolim mostrando que ainda existem paraísos perdidos. Abro duas ou três latas de Heineken, nada a ponto de perturbar o humor de Luciana. É possível sobreviver nesses termos.
 
Driblo a angústia, faço um desenho mental das novas circunstâncias, crio o meu cenário particular, quero viver à la Kerouac, um dia de cada vez, sem pensar além do próximo filme que poderei assistir depois das nove, quando minha filha desaguar no sono. Não é mal imaginar que essa guerra em que a humanidade se meteu é diferente daquela ilustrada por Art Spiegelman, com bom-bas, sangue e campos de concentração. 
 
Desligo a TV antes que o presidente regurgite sua próxi-ma insanidade. Como é possível levar a sério alguém que segue na contramão do mundo? Noves fora, agora só existe o caminho da adaptação. A vida mudou. Numa existência de confinamento, a ideia de que os mais fortes sobreviverão deve ser compreendida em toda sua extensão. É preciso encontrar abrigo espiritual para que o psiquiatra não seja capaz de diagnosticar paranoia em corpo sarado.  
 
No final, o lance é meio Pe. Antônio Vieira: cintos aper-tados, tochas acesas e expectação cuidadosa. Por isso, repito comigo, todos os dias, que quando o inimigo se mandar, eu quero mesmo é ficar em casa, ler o próximo livro, ser o “toy story man” de Clarice e escolher a melhor hora para voltar de viagem. 
 

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