Daniel Costa

25/05/2020 15h57
 
MUNDO BIZARRO
 
 
Ramon vinha quase sempre no início da tarde, com sua guitarra a tiracolo e revistas Mad compradas no sebo País das Maravilhas. Meia hora depois, Joaquim e Pio despontavam arrastando seus coturnos. Aí minha mãe aparecia com um pedaço de bolo e quatro copões descartáveis de Coca-Cola. O som do meu quarto já estava ligado. Era uma espécie de ritual, algo como aquelas confrarias literárias que pululavam pela Paris do Século XVIII, em que criados serviam intelectuais antes que eles se pusessem a falar sobre as ideias liberais de Rousseau e de Diderot. 
 
Só que a gente ainda ocupava a condição de estudante do segundo grau e o lance era rock e Kropotkin na veia. O novo disco do Ramones, o último show dos Ratos de Porão, o poder dos rifes do Stiff Little Fingers em Alternative Ulster, as batalhas de ideias entre anarquistas e comunistas e, claro, a derradeira miséria gerada pelo capitalismo. Qualquer coisa servia de mote para que as discussões se iniciassem. Elas duravam até a boca da noite, quando o telefone tocava e o pai de alguém mandava recado do outro lado da linha.
 
“Eu acho que já passou da hora de colocar o bloco na rua. Se não for assim não vai ter jeito. Tem que ser ação antifa mesmo. Você viu o que aqueles torcedores do Corinthians fizeram? Sócrates até apoiou o movimento!”.
 
“Eu vi. E ainda deram alguns sopapos nos fascistas”.
 
“Esse tipo de estratégia tem que se espalhar”.
 
“Também acho. A galera ainda tá na nota de repúdio”.
 
“Quando acontecerem novamente essas passeatas a favor de Ato Institucional, o negócio é jogar ovos!”.
 
“É constranger mesmo”.
 
“É preciso esvaziar as manifestações pra ficar só meia dúzia de radicais, aqueles violentos que andam armados, a turma do White Power e dos Camisas Verdes, que segue o protoditador desde quando ele era um desconhecido amante de Goebbels. Aí ele vai perder a força, virar uma caricatura e voltar a falar para esses grupelhos de fascistóides”.
 
“O que eu acho bizarro é que a missão genocida tá sendo tocada. A estratégia de confundir e de desautorizar especialistas tá detonando e vai lascar muito mais gente. É a necropolítica rolando fácil!”.
 
“Sim, verdade. Em termos de maquiavelice ele está nadando de braçada. Depois, quando acabar a confusão e as pessoas se esquecerem dos milhares de mortos, ficará só a crise econômica. E aí o cara vai arrotar um “eu avisei”.
 
“Isso. E ainda vai culpar os governadores”.
 
“Sim, essa é a estratégia dele”.
 
“Meus amigos, vocês estão falando bobagem. Não pararam pra pensar na ressaca psicopática que uma ação dessas poderia causar? Esse tipo de confronto direto talvez pudesse ter sido feito na primeira oportunidade, quando começaram os ataques aos poderes constituídos. Os caras hoje estão se achando o Super Mouse. Eles só querem uma desculpa pra chutar o balde. Além do mais, é até previsível o resultado de uma ovada na testa de um atirador de elite aposentado ”.
 
 “Ei, vocês ouviram que o Digão do Raimundos disse que o atual momento é uma amostra do comunismo?”  
 
“Eu escutei essa asneira. O negócio é que, ou o indivíduo toca guitarra, ou vai estudar ciência política. As duas coisas não podem ser feitas ao mesmo tempo. Sair falando do que não se entende é de lascar”.
 
“Sim. Hoje, mais do que nunca, cada pessoa forja as suas próprias verdades e busca lampejos de informação capazes de alimentá-las, mesmo que seja por meio da audição de uma fita k7 gravada por um animador de festa infantil. É por isso que a ciência anda desacreditada”.
 
“É isso. Tá tudo muito doido. Ninguém sabe o que vai acontecer. Parece até que a gente tá vivendo num mundo retrô. Século XX misturado com século XXI; anos 80 mexidos na panela junto com os anos 2000 e os anos 30; médico e curandeirismo; comunismo e capitalistas anarquistas; Deus e cheque especial; ditadura democrática; punk de direita.”
 
Joaquim, que era devoto do Sukata, baixista dos Garotos Podres, não gostou da última ponderação e deu uma rabissaca. A discussão terminou por aí. Mas que fique claro ao leitor: tudo isso aconteceu há muito tempo, quando o fim da história não tinha sido anunciado, o regime de força bruta ainda carcomia as entranhas do país, e o brasileiro esperava ansiosamente pelo nascimento de uma nova nação, em que haveria de vigorar uma democracia plena e robusta, sem espaços para charlatões e fetichistas de generais.
 

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).