Hugo Manso

Engenheiro e professor do IFRN - Presidente do Conselho Curador da FUNCERN

09/11/2023 07h34

 

Enem 2023: Visibilidade para o trabalho invisível

 

É possível que estudantes homens e mesmo jovens mulheres, tenham encontrado dificuldades na redação do ENEM desse domingo dia 05 de novembro de 2023.

Alguns depoimentos falam claramente nesse sentido:

“Um tema difícil, porque a política do cuidado ainda é muito recente e o debate está só começando, mas é urgente e extremamente importante dialogarmos sobre a invisibilidade do trabalho de cuidado da mulher no Brasil.” Rosangela da Silva.

Para nossas alunas do iFRN, seguramente um excelente tema. Bem como para todos e todas inscritos no exame que adquiriram consciência social. Seja em suas famílias, grupos socio culturais ou no mundo do trabalho. Em especial, quem atuou no movimento estudantil, deve ter percebido como o tema foi oportuno e de fácil elaboração. As pessoas que conhecem a Marcha Mundial de Mulheres, que atuam junto a organizações não governamentais, movimentos sociais ou estão mais antenadas com temas do feminismo e da necessidade de autonomia das mulheres, gostaram e saíram-se bem na prova.

“Que tema importante o ENEM trouxe na redação. O trabalho do cuidado que sobrecarrega as mulheres sustenta a vida. [...] quanto Estado e sociedade precisam reconhecer e tomar pra si esse trabalho pra que seja dividido igualmente [...] Que esta reflexão da prova possa ser aprofundada e transformada em mudança de vida das mulheres e da sociedade.” Isolda Dantas.

Vendo as postagens do INEP conhecemos o tema: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.

A Marcha das Margaridas, é um exemplo de busca pela visibilidade dessa pauta. Trata-se de uma imensa manifestações de mulheres trabalhadoras rurais que vem dando visibilidades as pautas em defesa dos direitos sociais e contra a violência no campo e nas florestas desde o ano de 2000.

Segundo o IBGE, em 2022, “mulheres dedicaram 9,6 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas.”

No Brasil, a taxa de realização de tarefas domésticas entre as pessoas com 14 anos é de 85,4% em 2022. Ou seja, 148 milhões de pessoas nesse grupo etário realizando aquelas atividades.

As mulheres que se declararam pretas tinham a maior taxa de realização de trabalhos domésticos. Homens mais instruídos participam, mas somente quando se tratam de trabalhos de reparos é que a presença masculina é maior.

Ainda segundo pesquisa do IBGE durante a Pandemia, as atividades que mais cresceram foram cuidar dos animais domésticos, da limpeza ou manutenção de roupas e sapatos e pequenos reparos ou manutenção do domicílio, do automóvel, de eletrodomésticos ou outros equipamentos. “Quase todas as atividades cresceram como reflexo da pandemia”, destaca a analista da pesquisa. Obviamente que as aulas para crianças e adolescentes, cuidados com a saúde mental e física das pessoas em suas casas, na maioria de pequenos cômodos e o cuidado com os adoecimentos, recaíram fortemente sobre as mulheres.

As tarefas domésticas e cuidado de pessoas consomem imensas 17 horas de trabalho por semana. Esse é o trabalho invisível que tratou o tema do Enem.

Trabalho não remunerado e não valorizado socialmente.

Nosso desafio não é esconder as tarefas de limpeza doméstica, o cozinhar pela madrugada, nem muito menos o cuidado com crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais. Mas reconhecer esse trabalho, valorizá-lo e remunerá-lo. Quando falamos em dupla e tripla jornada de trabalho, nos referimos aquelas mulheres que além do trabalho profissional, fora de casa, tem no trabalho doméstico, outra jornada. Tão cansativa e tão importante social e economicamente. Contudo não valorizada, não remunerada, invisível.

Na pauta, necessário colocar a profissionalização para a atenção. Profissionalização para as “cuidadoras de idosos”, os e as auxiliares de serviços gerais em suas próprias moradias. Sim, profissionalização, com cursos técnicos, diplomas e renumeração.

Os programas de bolsa, as aposentadorias especiais e a redução das jornadas de trabalho precisam levar em consideração a existência do trabalho doméstico. Ao Estado cabe não apenas a fiscalização, a normatização, mas sobretudo a valorização e o controle sobre a remuneração do trabalho.

Aquisição e distribuição de equipamentos de proteção individual – EPIs – para o trabalho doméstico. Reconhecimento de adicionais noturnos, periculosidades e insalubridades. Tudo quanto o capital tenta retirar do mundo do trabalho, com a informalidade progressiva do “empreendedorismo artificial”, o debate sobre a invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pelas mulheres recoloca. E com força.

Ora, perguntam alguns incrédulos, como remunerar o trabalho da limpeza diária em banheiros, calçadas e quintais? Quanto vale a mão de obra na cozinha da vovó?  Como quantificar o valor de uma higienização pessoal em crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais? Não vamos precisar da métrica de Frederick Taylor em seus estudos de tempos e movimentos nas indústrias do século XX. Precisaremos sim, de posicionamento, de firmeza na elaboração da legislação e no reconhecimento profissional e social do trabalho.

Hoje, as “cuidadoras” nas residências da classe média e das famílias ricas em nosso país, são assalariadas. Como as babás e as “empregadas domesticas”, cujos trabalhos foram definidos por lei somente em 2015.

Art. 1º Lei Complementar 150 de 01/06/2015. “Ao empregado doméstico, assim considerado aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, por mais de 2 (dois) dias por semana, aplica-se o disposto nesta Lei.”

Quebrar a invisibilidade que tratou a redação do Enem, é reconhecer que milhões de mulheres em todo o planeta, desenvolvem a séculos essas tarefas sem nenhum reconhecimento ou remuneração. O trabalho doméstico não remunerado e não reconhecido socialmente, é uma das formas mais antigas de acumulalçao de capital, mediante a exploração do trabalho feminino, historicamente apropriado.

O movimento feminista, em especial a Marcha Mundial de Mulheres, tem afirmado que “O mundo não é uma mercadoria! As mulheres também não!”. E nas manifestações de rua o grito da batucada feminista é claro: “A nossa luta é todo dia: somos mulheres e não mercadoria!”. A Marcha Mundial de Mulheres afirma, em seu site, https://www.marchamundialdasmulheres.org.br/

“Na sociedade capitalista e patriarcal, a divisão sexual do trabalho separa o trabalho dos homens e o das mulheres, e define que um trabalho vale mais do que o outro. O trabalho dos homens é associado ao produtivo (o que se vende no mercado) e o trabalho das mulheres ao reprodutivo (a produção dos seres humanos e suas relações). As representações do que é masculino e feminino são duais e hierárquicas, assim como a associação entre homens e cultura, e mulheres e natureza. Na Marcha Mundial das Mulheres lutamos para superar a divisão sexual do trabalho e, ao mesmo tempo, pelo reconhecimento de que o trabalho reprodutivo, doméstico e de cuidados está na base da produção do viver.

Colocar milhões de jovens e adultos para refletir e escrever sobre o assunto é um estimulo importante. Agora, com toda sociedade comentando, as portas estão abertas para a construção da política e do plano nacional de cuidados.

O Enem não apenas é amplo, é também democrático. Todas as pessoas que já concluíram o ensino médio e estudantes concluintes podem e devem ter acesso ao ensino superior.

As notas do Enem permitem acessar o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e o Programa Universidade para Todos (ProUni) em todo território nacional. Notas que também são aceitas em universidades de Portugal. É através do Enem que estudantes podem acessar o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies).

Portanto, a retomada do espaço educacional e político, do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM - instituído em 1998, com o objetivo de avaliar o desempenho escolar dos estudantes tem sido fundamental.

*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR.


*ESTE CONTEÚDO É INDEPENDENTE E A RESPONSABILIDADE É DO SEU AUTOR (A).